Bem Vindo ao Blog do Pêga!

Bem Vindo ao Blog do Pêga!

O propósito do Blog do Pêga é desenvolver e promover a raça, encorajando a sociedade entre os criadores e admiradores por meio de circulação de informações úteis.

Existe muita literatura sobre cavalos, mas poucos escrevem sobre jumentos e muares. Este é um espaço para postar artigos, informações e fotos sobre esses fantásticos animais. Estamos sempre a procura de novo material, ajude a transformar este blog na maior enciclopédia de jumentos e muares da história! Caso alguém queira colaborar com histórias, artigos, fotos, informações, etc ... entre em contato conosco: fazendasnoca@uol.com.br

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sobre tropeirismo e a abertura de estradas no Rio Grande colonial

 

Houve outro momento na longa duração histórica do que se convencionou chamar região platina. Um momento em que ainda não se conheciam autopistas e aeronaves para transportes rápidos e seguros. Um momento em que os mapas  ainda não registravam os limites de países como a Argentina, o Brasil e o Uruguai. Eram tempos em que as fronteiras oscilavam, movendo-se ao ritmo das disputas territoriais dos impérios ultramarinos de Portugal e Espanha. Também naqueles tempos, como nos dias atuais, homens circulavam, com seus objetos e suas ideias, nas amplas áreas da região platina. Mas o faziam de modo inteiramente distinto. Cruzavam as campanhas, as planícies litorâneas, a serra e os Campos de Cima da Serra, atravessavam pradarias, serrados e planaltos. Deslocavam-se sobre o lombo de cavalos e mulas, conduzindo rebanhos de gado bovino, muar, ovino, suíno e equino, entre outros. Transportavam toda a sorte de mercadorias destinadas a suprir as necessidades de regiões localizadas a centenas de quilômetros. E, ao fazê-lo, acabavam por construir novas paisagens por onde passavam e estabeleciam caminhos, permeados por estruturas de apoio às suas lides. O conjunto dessas atividades de deslocamento e transporte de mercadorias é regularmente conhecido como tropeirismo, dado o caráter de formação de tropas e tropilhas de animais que ora apresentavam-se como meio de transporte, ora como a própria mercadoria a ser conduzida.

 

Do ir e vir desses agentes históricos resultou também a construção de um novo espaço na região platina. Suas andanças os levaram a cruzar por territórios indígenas pouco ou minimamente impactados pelos europeus, nas primeiras décadas da conquista espanhola e portuguesa. Ao longo do século XVII, lentamente, as rotas de ligação entre as cidades coloniais espanholas foram sendo estabelecidas, sobretudo nos caminhos que interligavam Buenos Aires, Santa Fé, Corrientes, Assunción, Córdoba, Tucumán e Salta, entre outras. Por outro lado, também os Jesuítas, ao estabelecerem as reduções de Guarani, a partir de 1609, deram início a uma intrincada rede de caminhos que conectavam seus povoados, e estes às suas estâncias e áreas de extração de erva-mate nativa, bem como às cidades espanholas. Em movimento distinto os portugueses, e mais tarde os luso-brasileiros, expandiram suas ações em direção ao sul das capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo, chegando até o litoral e os campos da então chamada Banda Oriental. Esta era a ampla área localizada entre as margens do rio Uruguai e o litoral atlântico, compreendendo o atual país Uruguai e o atual estado do Rio Grande do Sul. Os interesses projetados sobre a região platina levaram ao contato direto entre as distintas populações em presença. A saber, espanhóis, portugueses, africanos e indígenas de diferentes parcialidades culturais. Estes contatos conheceram momentos belicosos, mas também uma intensa aproximação, na forma de trocas comerciais, relações de parentesco, etc. À medida que a presença de diversos agentes era incrementada, maior era a quantidade dos novos caminhos abertos e as distâncias por estes cobertas.

 

Ao longo do século XVIII, as rotas foram, paulatinamente, ampliadas e a atividade do tropeirismo consolidou-se. Consolidaram-se também as estruturas materiais a ela relacionadas. De forma que, além dos fluxos de homens, gado de todo o tipo, mercadorias e ideias deslocadas pela região, espaços de fixos foram estabelecidos, como suporte às ações desenvolvidas ao longo dos caminhos. A paisagem foi alterada pela configuração de diferentes espacialidades, que desenharam a nova ordem colonial sobre os, até então, territórios indígenas. Assim, as espacialidades indígenas foram alteradas, reorganizadas e repensadas sob novos propósitos, pautados pelos interesses dos agentes coloniais. Este processo não esteve livre de tensões, mais ou menos agudas, segundo a intensidade e dinamicidade das alterações provocadas e as possibilidades do estabelecimento de adequações, negociações e consensos entre os sujeitos envolvidos (SILVA, A., 2006, 2008; SILVA; BARCELOS, 2009).

 

Desta maneira, os olhares coloniais portugueses, deslocados para a América meridional, estiveram relacionados a dois momentos: o primeiro, que inicia no século XVII, consiste na aproximação de bandeirantes aos confins meridionais da América portuguesa, com o objetivo de capturar mão de obra indígena nas reduções de índios guarani estabelecidas pelos missionários jesuítas no  Itatin  (atual  Mato  Grosso  do  Sul),  no  Guairá  (atual  Oeste  do  Paraná)  e  no Tape (atual Rio Grande do Sul). A ação dos jesuítas entre os Guarani do Tape havia iniciado em 1626, através da evangelização promovida pelo padre Roque Gonzáles de Santa Cruz, seguido mais tarde por outros companheiros. Baseado na experiência desenvolvida na região do Guairá, os jesuítas promoveram a introdução do gado bovino entre os Guarani. Contudo, o controle sobre os rebanhos que se formavam era dificultado pela falta de demarcações ou limites artificiais ou naturais nas áreas de  pastagem. Conduzindo animais para as planícies costeiras, os Guarani e jesuítas terminaram por criar uma ampla área de reserva de gado. A proximidade com o litoral dos atuais Rio Grande do Sul e Uruguai levou à denominação dessa área como Vaquería del Mar, ou Vacaria do Mar. Durante o período em que missionavam entre os Guarani, os rebanhos foram aproveitados para alimentar a população das nascentes reduções instaladas no Tape. Contudo, após o acosso dos bandeirantes, jesuítas e índios afastam-se do território no qual estavam estabelecidos. Nessa retirada, o gado utilizado para o sustento das Missões, deixado para trás, se reproduziu livremente, ampliando consideravelmente os rebanhos da Vacaria do Mar. Sem a presença jesuítica no Tape, não era mais possível manter o controle e a posse sobre esses animais. Buenairenses, correntinos e santafesinos passaram então a abater e retirar animais da Vacaria do Mar, alegando direitos em uma discussão não isenta de argumentos históricos, frente aos protestos dos jesuítas. Paulatinamente, luso-brasileiros passaram a dirigir seu interesse para os rebanhos. “Estava lançado o fundamento econômico básico de apropriação da terra gaúcha: a preia do gado xucro.”  (PESAVENTO, 1994, p. 9).

 

A crescente presença de portugueses e luso-brasileiros na região ao sul da capitania de São Paulo a partir do final do século XVII não se deve, obviamente, apenas e tão somente à busca de ganhos com a exploração dos rebanhos de gado alçado na Vacaria do Mar. Insere-se em um processo mais amplo, onde a coroa portuguesa desenvolveu uma concepção geopolítica segundo a qual as fronteiras naturais de seus domínios deveriam estender-se até a margem norte do rio da Prata. Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, a conformação natural servia como balizadora para a demarcação de limites, de modo que cadeias de montanhas, colinas, rios e arroios, entre outros, serviriam de marcos naturais entre áreas coloniais. E a enorme bacia hidrográfica do rio da Prata era um forte elemento a ser considerado no tocante aos limites territoriais da América meridional portuguesa.

 

Como parte da estratégia portuguesa de disputar o controle da desembocadura do rio da Prata, foi estabelecida, em 1680, a Colônia do Sacramento, na margem norte do rio. Esse assentamento, inicialmente um fortim pouco defensável, foi rapidamente atacado pelos espanhóis de Buenos Aires. Contudo, os portugueses, através de acordos diplomáticos celebrados na Europa, lograram permanecer instalados no local. Em decorrência das necessidades do assentamento, as terras imediatamente próximas à Colônia, bem como o gado alçado ali presente, passaram a fazer parte de seus interesses, juntamente com o comércio que iniciaram com Buenos Aires e outras cidades espanholas do interior.

 

A presença portuguesa em latitudes tão elevadas ampliou a importância estratégica não apenas da desembocadura do rio da Prata, mas de toda a região circunvizinha. As terras localizadas a leste do rio Uruguai passaram a ser denominadas Banda Oriental e, como forma de garantir a posse do território e a ampliação da ação missionária, a Companhia de Jesus decidiu pela fundação de novas reduções, a partir de 1682. Esse retorno se deu em um contexto diferente daquele presente nas primeiras reduções do Tape. Entre 1682 e 1706, os jesuítas lograram estabelecer sete reduções, que se somaram às outras assentadas na mesopotâmia dos rios Uruguai e Paraná e ao norte deste último, perfazendo trinta reduções, majoritariamente de índios guarani. A integração com as demais reduções é um aspecto importante a ser considerado. Durante a primeira metade do século XVIII, os jesuítas promoveram um sistema de trocas e intercâmbios entre suas reduções, fazendo com que aquelas situadas na Banda Oriental passassem a se especializar na extração de erva-mate e na criação de gado bovino. Contudo, a utilização dos rebanhos da Vacaria do Mar se via prejudicada pela disputa com espanhóis e portugueses. Dessa forma, os jesuítas estabeleceram na Banda Oriental estâncias de gado para cada uma das sete reduções e para a redução de Yapeyú, localizada na margem oeste do rio Uruguai, em atual território argentino.  Nessas estâncias, o controle sobre os rebanhos se fazia mais efetivo. Seguindo a lógica da época, rios, arroios e matas foram utilizados como limites entre as estâncias, de forma a garantir a posse individual de cada povoado sobre seus rebanhos.

 

Em 1704, diante das frequentes retiradas de gado da Vacaria do Mar por parte de colonos espanhóis e de portugueses, os jesuítas buscaram estabelecer uma nova reserva de gado, em uma área distante das cidades coloniais platinas e da Colônia do Sacramento. A região escolhida foi a dos atuais Campos de Cima da Serra. A topografia, juntamente com a presença de matas de araucária, oferecia as condições para evitar a dispersão dos animais (BARCELOS, 2000; KÜHN, 2007; PESAVENTO, 1994; SILVA, A., 2006).

 

Diferente da Vacaria do Mar, formada em consequência da perda do controle sobre os rebanhos, essa nova vacaria fora fruto de uma iniciativa planejada pelos jesuítas. Cabeças de gado foram retiradas das estâncias das reduções e a exploração deveria se dar de forma proporcional à contribuição de cada uma. A área ficou conhecida como Vaquería de los Pinares, ou Vacaria dos Pinhais, e a ela se refere o irmão Silvestre Gonzáles (1705 apud DE MASY, 1989, p. 179):

[…] no tiene que hacer esta vaquería, con la bondad en un todo,
con la de Pinares, así en los pastos, como en las aguadas, como en
las  rinconadas,  en  el  camino  y  en  la  cerca,  y  en  la  comodid;  y
también en la comodid de hacer vacas y el poder ver desde luego
adonde las hay. Algo más fría sí es que está, porque es tierra más
alta, pero mucho más amena.

Dessa forma, a região dos Campos de Cima da Serra passou a integrar o espaço de domínio das reduções de Guarani. Contudo, a pouca presença destes e a falta de assentamento estáveis fez com que a posse da mesma não fosse reconhecida quando poucos anos depois os portugueses passaram a frequentar a mesma em busca do gado. Os Guarani patrulhavam frequentemente as estâncias, embora o fizessem com menor zelo na área da Vacaria dos Pinhais. Buscavam afugentar pretensões dos colonos espanhóis e dos portugueses sobre os rebanhos. As novas reduções e suas respectivas estâncias garantiam aos jesuítas e Guarani a posse sobre uma ampla área da Banda Oriental. E não apenas para a Companhia de Jesus em particular, mas também para a coroa espanhola, visto que era a serviço desta que evangelizavam os indígenas. Frente a essa “fronteira”, restava aos portugueses estender sua presença à faixa litorânea do Atlântico, passando essa região a ser a via terrestre de comunicação entre a Colônia do Sacramento e Laguna, bem como o restante do Brasil português. Na primeira metade do século XVIII a Banda Oriental do rio Uruguai será marcada então por uma configuração espacial que terá, por um lado, a presença da coroa espanhola através das missões jesuíticas, suas estâncias e vacarias, e a presença portuguesa através da Colônia do Sacramento e do gradativo uso da zona litorânea como  rota terrestre entre esta e o Brasil português. Ao longo do século, os portugueses ampliariam sua presença, fixando-se na região.

 

A Colônia do Sacramento e as vacarias, do Mar e dos Pinhais, desempenharam um papel central no deslocamento das atenções luso-brasileiras em direção ao sul da América portuguesa, a ponto de movimentar o segundo momento de investidas na região. A grande quantidade de gado chamou atenção de vários “homens de negócios”, dentre estes os lagunistas (da então vila de Laguna, localizada no atual estado de Santa Catarina), os paulistas, além dos colonos espanhóis das cidades platinas, que, através de tropeadas, contrabandeadas ou não, iniciam uma verdadeira razia às vacarias. Nesse contexto, a região sul da América portuguesa estabeleceu fortes ligações econômicas com outros espaços coloniais, espanhóis e portugueses. E foi nesse momento que os “caminhos do gado” ou “caminhos de tropeiros” adquiriram significativa importância, tanto para a dinamização econômica e questões ligadas a trocas e intercâmbios culturais quanto para o povoamento colonial da região (SILVA, A., 2006).

 

Inúmeras estradas e picadas foram abertas para o escoamento do gado e outros produtos que abasteciam o mercado local e de diferentes regiões. Rotas assumiram funções históricas que transcenderam o simples transporte de gado. Com o passar do tempo e a intensificação das atividades dos tropeiros, essas antigas estradas foram também importantes para a ocupação colonial das regiões do tráfego tropeirístico. Colonização que, para a Coroa portuguesa, foi sinônimo de posse do território (BARROSO, 1979; 2006; JACOBUS, 1997; SILVA, A., 2006). Três dessas estradas marcaram indelevelmente esse contexto:

 

a) “Caminho da Praia”: estruturada  a partir de 1703 por Domingos da Filgueira, seguia pelo litoral, entre a Colônia de Sacramento e Laguna;
b) “Caminho dos Conventos” ou “Caminho de Sousa Farias”: aberto em 1728, partia de Araranguá, cruzava pelos Campos de Cima da Serra até chegar à região da atual Curitiba;
c) “Caminho das Tropas”: estabelecido por volta de 1731, por Cristóvão Pereira de Abreu, partia de Viamão, onde se localizava o Registro de Viamão (ou Guarda Velha, no atual município de Santo Antônio da Patrulha), seguia rumo ao norte até alcançar os Campos das Vacarias, onde então cruzava o atual rio Pelotas (antes denominado rio do Inferno). Posteriormente, dirigia-se aos Campos de Lages e aos Campos Curitibanos, cruzava o rio Negro e o rio Iguaçu, chegando então aos Campos Gerais de Curitiba, onde se localizava o Registro de Curitiba, último registro antes da feira de Sorocaba.

 

O processo de povoamento da região sul teve como objetivos a ocupação do território e a criação de uma rota comercial bem estruturada e segura para as tropas, além do direto interesse de alguns “homens bons”. A ocupação ocorreu, de forma mais efetiva, por volta da terceira década do século XVIII, quando a Coroa portuguesa distribui terras (as sesmarias), principalmente aos militares, por serviços prestados (KÜHN, 2007; PESAVENTO, 1994; BARROSO, 1979). Eram estes “homens bons” ou “homens de bem”, indivíduos com influentes relações, os quais constituíram grande capital político e foram bastante privilegiados com o comércio do gado e a apropriação de terras sulinas (HAMEISTER, 2002).

 

No entanto, a análise desses caminhos não deve ser resumida a questões práticas e logísticas de uma só faceta, a econômica. Deve-se chamar a atenção ao caráter social do tropeirismo, possibilitador da dinamização de fluxos e relações socioculturais intensas. Tendo implicado a transformação do espaço por onde trafegavam não só o gado (de pequeno ou grande porte), mas também homens com suas ideias, seus costumes, seus saberes e fazeres cotidianos, construindo assim o que chamamos de tropeirismo (SILVA, A., 2006). Por sua vez, o comércio em lombo de mulas, representado pelos diversos tipos de tropas, movimentou a economia a partir do primeiro quartel do século XVIII, ao longo do século XIX e início do século XX, quando paulatinamente as mulas dão lugar ao transporte ferroviário e rodoviário.

 

Destacar esse contexto em que a região da Banda Oriental estava em disputa entre as potências coloniais de Espanha e Portugal justifica-se na medida em que parte da historiografia gaúcha tratou de negar o passado espanhol do Rio Grande do Sul, e essa negação contribui largamente para o mito da brasilidade original do estado e o papel do tropeirismo na integração “nacional”, como se verá adiante.

 

Fonte: “Meu avô era tropeiro!”: identidade, patrimônio e materialidades
na construção da Terra do Tropeirismo – Bom Jesus (RS), PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

Nenhum comentário:

Postar um comentário