Alguém nessa vida já pensou em render homenagem ao muar? Sim, aos nossos sempiternos burro e mula? Talvez muitos pensem neste exato momento que loucura é a minha vir aqui tratar de um assunto que seria mais adequado num sítio para veterinária ou coudelaria e tais e quais. Mas eu explico: há razão sim para que se abra parênteses, um humilde espaço para umas poucas linhas a quem carregou o Brasil nas costas por muito tempo, foi jogado para escanteio(mesmo sem qualquer vocação para bola de futebol), carregou sozinho, como se diz na gíria futebolística, o piano às costas(embora sem a habilidade de um bom meio-campista) e, esquecido, hoje amarga uma aposentadoria sem reconhecimento em pequenos sítios – longe da glória.
Em menor grau merecem também essa justa homenagem os cavalos e as éguas(mais próprios para serviços leves) e também os jumentos. Tão nosso conhecido este último que merece uma alcunha diferente de região para região. Acreditem ou não, há locais no Maranhão que o insigne participante de momentos cruciais da história do Cristianismo(não foi ele que levou o Menino-Senhor ao lombo durante uma fuga?) recebe o nome de Dogue. Vejam só!
Pois bem, estes animais foram econômica e culturalmente importantes no Brasil até, quem diria, meados do século XX.
HISTÓRIA
Feitas as apresentações, vamos ao que interessa.
Os quadrúpedes são muito antigos na história humana. Desde que o homem domesticou o eqüino, cruzou-o acidentalmente ou não com o asinino, obtendo o muar, que os dois estiveram juntos(justiça seja feita: o homem em cima do coitado!) em todas as conquistas humanas até a substituição do quadrúpede pela máquina em grande escala – logo após a Primeira Guerra Mundial.
No Brasil, os primeiros quadrúpedes, segundo a veterinária Vera Lúcia Nascimento Gonçalves “desembarcaram em São Vicente em 1534. No ano seguinte, os portugueses trouxeram nova remessa, que ficou em Pernambuco e em 1540, Tomé de Souza trouxe uma terceira leva para a Bahia. Foi a partir desses animais que se formou nosso rebanho eqüino, o segundo maior do mundo”.
INTEGRANDO O BRASIL
O muar – cruzamento de jumento e égua –, pela sua rusticidade, era mais apropriado para os trabalhos pesados de tração. E foi principalmente no seu lombo que o Brasil moveu-se. Economicamente, os muares levavam do litoral para o interior toda sorte de mercadorias, subindo e descendo serras, cortando os sertões sem estradas, usando picadas mal feitas e abertas às pressas. Nada reclamou mais que o alimento para continuar existindo e poder unificar o Brasil. Sim senhor! Foi ele o primeiro vetor da união nacional, como bem anota Gabriel Passetti em seu estudo sobre tropeiros: “a ação dos tropeiros, no século XVIII (...) acabou resultando finalmente na unificação dos diversos núcleos coloniais portugueses e possibilitou assim a criação de um conjunto colonial que passaria depois a ser o Brasil”.
SUBSTITUIÇÃO
No século XIX, o pesado fardo do muar começou a ser aliviado pelo trem de ferro. Ufa! Já não era sem tempo. E finalmente no século XX – não de maneira uniforme pelo território nacional – pelo automóvel. No norte do Tocantins, especificamente na região de Babaçulândia, somente no início da década de 1950 os automóveis fizeram seus primeiros rastros no sertão.
Até então, quem comandava o espetáculo por aqui era o burro e a mula. Reproduziam o que era consuetudinário no Brasil: transportavam a economia e a cultura sobre o lombo em selas, cangalhas e jacás. Vejam só o exemplo de um extenuante trabalho a que eram submetidos: levaram por muito tempo sal de cozinha de Balsas-MA para Poxoréo-MT, num percurso que não era inferior a 1.500 km. Isso é que chamo salgar o couro!
CULTURALMENTE ESQUECIDOS
Se economicamente foram importantes, também o foram culturalmente. Os primeiros carteiros entregavam correspondência Brasil afora sobre eles. E nessas correspondências, claro, iam ardorosas promessas de amor do mocinho na cidade para a brejeirinha na fazenda. Com certeza, quando um ou outro recebia do tropeiro-carteiro a missiva que tinha sido perfumada com tanto empenho na cidade ou na fazenda, a fragrância já tinha evolado e dado lugar ao cheiro de suor e esterco. Agh! Não tem importância, o amor não liga para isso. Se nela havia a descrição de como o amado iria um dia tirar a amada da modorra de uma secular fazenda, era o que bastava.
Os sonhos saltavam nessa hora da carta, com toda certeza, e ganhavam forma. O príncipe encantado, por certo já um médico ou um advogado formado na capital do império ou da província, chegava num alazão branco ajaezado para resgatar a sua prenda. E o muar onde fica nessa história? Não foi ele quem levou a carta? É ruim, né? Na hora do vamos ver, do bem bom, o cavalo toma o seu lugar e rouba a cena. Quanta discriminação! Quanta injustiça!
Mas, se levava notícias íntimas de amores e saudades, o muar também trazia a notícia em tempos dantes. O jornal, o almanaque, a enciclopédia, o violão, o piano desmontado para as donzelas e senhoras da cidade e do campo exercitarem-se nas horas aziagas e felizes. A Cultura também progredia no Brasil aos solavancos(do muar, claro!). As idéias culturais e políticas também se valeram dele. Apenas uma referência: foi sobre um cavalo(que perseguição com o muar, pô!) que D. Pedro I deu o famigerado grito “Independência ou Morte!”, atentando-se antes de ver se a cavalaria portuguesa não estava por perto.
E os livros? As poesias? E os melodramas de antigamente como chegavam a todos os rincões do Brasil? No lombo dos muares, rodando léguas e léguas(a quilometragem dos quadrúpedes) para deixar suspirando as mocinhas com os versos rimados e edulcorantes. Depois iam a passeio pelos campos regurgitar poesia na companhia da aia. Quem as levava nessas andanças? O muar, está visto! Nada disso, era o janota do cavalo. Já bem o dissemos aqui: o muar era para serviços extremos; o cavalo nem tanto, conformava-se melhor ao fausto.
As companhias mambembes de antanho valiam-se também do muar para rodarem as velhas carroças pelo sertão. Mas se havia um espetáculo reproduzindo algum épico ou mesmo a velha história de nossa independência você já sabe quem protagonizava...
Sei que muito mais fez o muar, mas se neste artigo louvá-lo é também enumerar o quanto ele foi injustiçado, para que o seu infortúnio não seja maior, paro por aqui.
Fonte: Overmundo
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