Bem Vindo ao Blog do Pêga!

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sexta-feira, 18 de maio de 2012

Depoimento - João Pereira

 

Descobri João Pereira numa tarde de abril, quando estava viajando na rodovia que liga Jatai a Caiapônia, no sudoeste de Goiás. Ví uma boiada relativamente grande na faixa de domínio da rodovia, parei, identifiquei o comissário e conversei rapidamente com ele. João Pereira me disse algo que interessou-me muito: que ainda viajava para São Paulo tocando gado e que fazia muitas viagens. Prontificou-se a me dar uma entrevista, passando seu endereço, em Jataí. E foi lá que o encontrei, num início de noite de junho, numa conversa que se prolongou por mais de duas horas, onde soube que estava diante de um dos últimos comissários de boiada ainda ativos em Goiás:

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- Seu João, primeiramente quero dizer que eu não contava mais encontrar um comissário que ainda faz longas viagens, principalmente para outros estados ... para mim, as boiadas tangidas tinham acabado, ficando só as viagens locais, em pequenos trechos dentro de Goiás ...
- Pois é, mas eu ainda viajo muito prá São Paulo e também faço muita viagem dentro de Goiás ... e tem muito serviço ... serviço é o que não falta.
- Mas isso quer dizer que ainda não estão no fim as grandes boiadas ? ...
- Eu não sei, porque nenhum peão dos que trabalham comigo tem jeito prá comissário, não tem o pulso que a gente teve, acho que não vai continuar depois que a gente parar, não ...
- Bom, mas como é que isso começou em sua vida ? Aliás, vamos por partes, seu nome, onde e quando nasceu ? ...
- Eu me chamo João Pereira da Silva, nasci aqui mesmo em Jataí, nasci em 46 ...
- Já está com 60 anos ?!
- Não, não, eu faço 60 só em novembro, no dia 4.
- E o começo ?
- Bom, meu pai era gerente de fazenda e, quando ele morreu, eu tinha 13 anos, assumi a gerencia ...
- Com 13 anos ?!
- É, com 13 anos ... eu trabalhei muito tempo como gerente e aí, um dia, o dono da fazenda era invocado (gostava) com tropa, tinha um rebanho de éguas e propôs prá mim e prá outro funcionário da fazenda prá gente arranjar um jumento prá criar na base da meia ... lá na fazenda era pouso de boiadeiro ... aí nós compramos um jumento Pega (raça de jumentos indicada para reprodutor por produzir excelentes burros e mulas) e logo no primeiro ano esse jumento gerou 60 burros, ficaram 20 prá cada um de nós ...
- Em que ano foi isso ?
- Foi em 1967 ... aí nós vendemos muito burro pro Mato Grosso ... com o dinheiro dos burros, compramos gado, vacas e bezerras, fomos indo ... Depois a gente trocou o gado por terra, terra era muito cara naquela época, foi uma chance, a gente comprou uma fazenda já formada, isso já foi em 1977 ... um dia meu sócio quis vender a parte dele, aí eu comprei, fiquei dono da terra.
- A produção do jumento então é muito boa, né ?
- É, um jumento corre (cruza) com uma égua de manhã e com outra de tarde, tem só que controlar direitinho porque se deixar ele só fica com uma égua, só corre com ela, tem que apartar ele da égua e colocar com outra ...
- E aí ...
- Pois é, aí quando eu fiquei com a terra fiquei também com a tropa e resolvi começar a tocar boiada prá São Paulo e Mato Grosso do Sul com capataz contratado, isso já foi no início dos anos 80 ...
- Capataz contratado ?
- Cheguei a ter 5 comitivas viajando ao mesmo tempo, tudo com capataz contratado ...

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- O sr. mesmo não viajava ?
- Não, eu só acompanhava com a camionete, ia até uns lugares, fiscalizava, orientava, mas com o passar do tempo eu comecei a ser roubado, tinha um ou outro capataz desonesto ...
- Mas como eles roubavam ?
- Apresentavam nota de despesa muito alta, eu pagava o peão mais a despesa e aí eu comecei a ver que tava perdendo dinheiro ... eu não queria deixar meu trabalho na fazenda, mas não teve jeito ... resolví acabar com as comitivas, fiquei só com uma, isso foi em 2001 mais ou menos, e comecei eu mesmo a viajar ...
- Vendeu quase toda a tropa ?
- É, fiquei com 30 burros, dos melhores, só burro pequenino, burro bom é burro pequeno, esse negócio de burro grande, aquela belezura, é só enfeite, burro bom é burro pequeno, minha tropa é toda de burro pequeno, mas só burro bom ...
- Quando começou a viajar foi prá onde ?
- Comecei indo prá Novo Horizonte (SP), também pegava boi de Catalão prá Cassilandia (MS), hoje tem boiada todo mês, não passa um mês sem uma viagem ... a gente toca 1000 reses, 1200, às vezes 500, 600, daí prá cima ...
- E com quantos peões viaja ?
- Uns 7 ou 8 ...
- E 30 burros mais a égua madrinha ???
- É, a gente faz a troca de montaria na hora do almoço, eu gosto de viajar com muita tropa, a troca de montaria descansa bem o burro, a maioria das minhas viagens é de 40, 60 dias, dá prá ir muito bem ... aliás, eu não uso égua madrinha, eu uso cavalo madrinha, um cavalo castrado é bem melhor, já tive problema com égua madrinha em pouso de fazenda, o homem tinha uns garanhões, fizeram o maior estrago, o homem reclamou comigo, daí prá frente só uso cavalo como madrinha ...
- Mas seu João, como é que hoje em dia, como são essas viagens, hoje tem muito asfalto, muita cerca de fazenda, como se toca boiada grande assim ?
- Eu procuro evitar o asfalto, ainda tem as velhas estradas boiadeiras que não são usadas por carro, por exemplo, se for prá São Paulo ... vou dar um exemplo, uma boiada que sai de Iporá (oeste de Goiás) prá lá, no trecho até Caiapönia eu venho por dentro, venho desviando do asfalto, chego em Buriti Sozinho (lugarejo provavelmente no município de Caiapônia), atravesso no 71 (posto de combustíveis na BR-364, na divisa dos municípios de Jataí e Mineiros, a sudoeste de Goiás), vou prá Mineiros, atravesso o rio Verdinho e vou até o Jacuba (rio na cabeceira do Parque Nacional das Emas). De lá eu saio no asfalto que vai prá Serranópolis (sudoeste de GO), atravesso o rio Corrente na ponte de asfalto, depois de uns 13 km viro a esquerda e vou pro Aporé (cidade de GO na fronteira com o MS), pulo pro Mato Grosso (do sul) e vou pela estrada boiadeira até a ponte de Ilha Solteira em São Paulo ou atravesso na balsa de Aparecida do Taboado (MS) ...
- Ainda tem balsa prá gado lá ?
- Tem ...

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- E lá em São Paulo, um estado tão desenvolvido, cheio de rodovias, de asfalto, como é que faz ?
- Ih, que nada, lá em São Paulo as estradas boiadeiras são preservadas, a gente viaja muito bem, vai passando no meio de laranjal, eucalipto, plantação de uva ... chega em Araçatuba só em estrada boiadeira, isso tudo, de Iporá até lá, leva 65 dias ...
- Eu fico surprêso ... mas é bom saber disso ...
- Pois é ... e eu digo que ainda tem muito sertão aqui dentro de Goiás ... tem o trecho de Aporé a Balisa (divisa de MT com o oeste de GO), eu levo 40 dias alí, sem entrar em corredor, só no cerradão ...
- Sem cerca, sem nada ? ...
- Nada. É uma solidão só, a única coisa que a gente vê nesses dias é o jato e o rastro que ele deixa no céu, bem lá no alto, de manhãzinha ...
- Pouso então é só no curral de corda, não tem fazenda pro pouso ?
- Só no curral de corda e a gente só na lona com rede, nenhuma fazenda dá pouso ... lá tem trecho tão ruim, de areião brabo, que a gente tem que por até 4 burros na carroça da comitiva prá aguentar o tranco.
- Como é que faz com a rês que fica de arribada ? Não tem estrutura pro arribador voltar ...
- Eu não uso arribador, não perco rês ... quando precisa, eu mesmo faço a arribação ... uma vez eu quase levei um prejuízo com um peão, tinha uma festa em Jataí, ele queria vir, deixou 2 bois de propósito prá trás, disse que ia arribar, apareceu na boiada uns dias depois, dizendo que não tinha encontrado as reses, aí na entrega, lá em Cassilândia, o capataz da fazenda não quis me pagar ... voltei prá Jataí muito aperreado, mas um amigo me disse que as reses estavam numa fazenda aqui perto – o peão tinha é voltado prá festa, trazido os bois e deixado na tal fazenda ... fui lá na camionete, peguei os 2 bois, botei na camionete, levei prá Cassilândia, entreguei pro homem, recebi o dinheiro ... mas isso serviu de lição, não uso arribador ...
- Mas esse caminho que o sr. usa, por dentro, imagino que beirando as serras, o vale do Araguaia, já era um caminho utilizado antes por boiadeiros ?
- Não, não, eu fiz esse caminho, hoje tem bastante boiada passando por ele ... isso foi porque um gaúcho, desses agricultores, fechou a estrada normal que a gente passava, eu não quis brigar, pensei até em procurar advogado, essas coisas, mas deixei prá lá, ia dar dor de cabeça, e eu então comecei a procurar essas alternativas, fui rasgando sertão adentro ... hoje todo mundo que leva boiada passa por lá.
- Seu João, e ainda dá dinheiro, quanto o sr. cobra, quanto paga pros peões ?
- Eu cobro 400 reais por marcha e pago 25 reais por dia pros peões, 30 pro cozinheiro ...
- Isso ainda sai mais barato pro fazendeiro que contrata o comissário do que mandar a boiada por caminhão... o sr. veja só, se é uma viagem com 1000 cabeças em 40 marchas, sai por 16.000 reais pra ele. Se contratar caminhões, com certeza o frete para 1000 cabeças, e são 20 reses por caminhão, isso dá 50 viagens de caminhão no total, vai sair no mínimo prá ele por uns 30.000 reais ...
- É, eu só sei que ele economiza dinheiro com a gente e o fazendeiro ainda gosta mais, porque o boi que viaja tocado é um boi mais calmo, ele vai pastando, não tem estresse ... o boi que vai em caminhão fica mais brabo, fica irritado, perde peso ...

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- Bom ... então, o esquema na volta, como é ? O fazendeiro paga o transporte da tropa por caminhão gaiola ?
- É, a tropa vem no gaiola e a gente vem de F4000, boiadeiro é bicho de pouca água, não dá prá voltar de ônibus, se a gente entrar num ônibus no fim da viagem, ninguém aguenta, o motorista não deixa, são muitos dias sem banho ... boiadeiro fica cheirando a macaco ...
- Banho é difícil mesmo ...
- E o boi estranha o dia que a gente consegue tomar um banhozinho em algum córrego na hora do pouso ... o boi acostuma com o cheiro da gente, quando boiadeiro fica limpinho a boiada fica nervosa, nem é bom tomar banho ...
- E o contrato com o fazendeiro, é no papel ?
- Nada, é só de boca mesmo, na confiança ...
- Não tem risco de ser enganado ?
- Não, muito pouco, só uma vez levei um prejuízo danado, um sujeito me contratou prá pegar uma boiada lá em Inhumas (próximo a Goiânia), era tudo armação, não tinha boiada nenhuma, ele aproveitou o transporte da tropa no gaiola prá levar um monte de mercadorias que tinha comprado com cheque roubado, deu o cano em todo mundo, sumiu, fiquei no prejuízo ... agora eu fiquei mais esperto, não acerto serviço com qualquer um, só com conhecidos ou então com muita referência.
- E a contagem do gado, é o sr. mesmo que faz ?
- Sou eu mesmo, só que não marco nos dedos da mão a talha não (talha de 50 cabeças: a cada 50 reses que passam pelo contador, ele fecha um dedo da mão e depois totaliza o número de dedos multiplicando por 50 e somando a fração excedente). Eu uso um contador de volume desses de supermercado e a cada talha completa eu marco um clique no contador ... depois é só multiplicar a marcação que tá no contador por 50 ...
- E quantas vezes por dia faz isso ?
- Quando a gente tá no cerradão fechado, tem que contar 3 vezes por dia, no mais é só na chegada e saída do pouso mesmo ... cerradão é muito difícil, mas a gente já tá acostumado ... tem até uma história, nós chegamos numa fazenda prá pegar uma boiada braba, só tinha rês arisca, eu disse pro fazendeiro que ia passar pelo cerradão prá economizar tempo, cortar caminho, ele não acreditou. O capataz dele viu minha tropa e não botou fé nos burrinhos pequenos ... pois juntei o gado todo, deu o maior trabalho, fiquei pousado junto com a boiada uma semana antes de sair e depois ela saiu pastando, mansinha, acostumou com a gente. Atravessamos o tal cerradão em um dia, não perdemos uma rês sequer, o fazendeiro não queria acreditar, ficou besta ...
João Pereira tem o semblante tranquilo, a voz pausada e firme e está muito bem conservado. Quando deixei sua casa, no centro de Jataí, já era noite avançada e eu tinha a certeza de que havia feito mais um amigo. João é casado e tem 3 filhas. Pretende viajar muitos anos ainda com as boiadas e eu espero ter a oportunidade de viajar alguns dias acompanhando sua comitiva, cortando aqueles ermos por ele falados, em qualquer lugar entre Aporé e Balisa, no sertão de Goiás.
Jataí, junho de 2006

Fonte: Foto Memória

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