As gigantescas dimensões do território brasileiro; a enorme extensão de nossa costa marítima, provida de reduzido número de ancoradouros naturais e a barreira das serras que, correndo próximas ao Atlântico, se interpõe entre o litoral e o interior imprimiram à ocupação e povoamento do País e à construção da unidade nacional o caráter de uma epopeia.
Nos dois séculos posteriores à descoberta, movidos pela busca de riquezas lendárias – cidades de ouro, minas de prata, serras de esmeraldas – foi o Brasil percorrido por numerosas expedições armadas, as bandeiras. Voltadas para o apresamento e escravização dos silvícolas e a busca de metais preciosos, dilataram as nossas fronteiras obtiveram sucesso no apresamento dos indígenas e colecionaram resultados irrelevantes em seus projetos de mineração. O êxito em relação a este objetivo somente começa a ser alcançado a partir do final do século XVII com a localização das primeiras zonas auríferas, prenuncio dos sucessos das décadas seguintes
em Minas Gerais e em Cuiabá.
O próprio sucesso, quando finalmente foi alcançado, trouxe consigo desafios consideráveis. Os mineradores, dedicados em tempo integral à busca do ouro, se descobriram, em dado momento, isolados nos confins de Minas, sem suprimentos para sustentar-se nem meios de escoar o minério extraído. Inexistiam estradas e sistemas de transporte de que pudessem socorrer-se.
Vencer as consideráveis distâncias que separavam os mineradores do litoral, transportando cargas de peso considerável através de trilhas estreitas e íngremes era tarefa que, à época, só poderia ser executada por mulas, animais híbridos, resultantes do pareamento entre o jumento e a égua. Elas haviam sido introduzidas no Brasil, pelos primeiros colonizadores, mas em meados do século XVII, quando os criatórios no nordeste já eram numerosos e florescentes, uma estranha determinação do rei de Portugal determinou que fossem totalmente extintos.
Supostamente não havia interesse da coroa lusitana em se encorajar a produção de um animal híbrido, apesar de suas indiscutíveis qualidades como montaria e transportador de carga.
Estavam as coisas nesse pé quando entrou em cena um personagem até então não existente na vida brasileira: o tropeiro. Audaciosamente ele se propõe a solucionar o impasse nas Minas com a introdução, no Brasil, de equinos que, produzidos nos criatórios do Rio de Prata, pelos espanhóis, haviam ficado subitamente sem mercado com o colapso da extração da prata nas minas de Potosi, na atual Bolívia.
As dificuldades a vencer eram numerosas. Era relativamente fácil burlar a vigilância do governo espanhol e trazer mulas da Argentina e do Uruguai, pelo chamado caminho da Praia, até Araranguá (SC).
E entre São Paulo e Curitiba já existia uma ligação, aberta pela instalação, nas sesmarias concedidas pela coroa portuguesa, de fazenda de criação de gado. O desafio a vencer era a abertura de uma estrada serra acima, de Araranguá a Curitiba, tarefa iniciada por Souza Faria e complementada por Cristovão Pereira de Abreu. Ele retificou e melhorou o caminho aberto pelo primeiro, melhorando trechos, construindo dezenas de pontes e pontilhões e, em 1733, passa por Sorocaba e chega a São Paulo, à frente de 130 proprietários de tropas, trazendo consigo 3.000 mulas trazidas do sul. Estava dado o passo inicial para garantir o suprimento regular das áreas de mineração e o escoamento do ouro das Gerais.
Essa nova situação teve repercussões enormes sobre a colônia, determinando inclusive a transferência de sua Capital de Salvador para o Rio de Janeiro, onde permaneceria até 1960.
Logo ficou evidente que o melhor ponto terminal para a jornada dos tropeiros de mulas – ou de tropas xucras – e a subsequente comercialização dos animais por eles trazidos numa feira eram os arredores da Vila de Sorocaba, em cujos campos e aguadas os equinos poderiam recobrar as energias consumidas na longa jornada, ganhando peso e beleza antes de serem postos a venda.
Em 1750, a criação do Registro de Sorocaba para recolhimento dos pesados tributos incidentes sobre o comércio de muares consolida a feira que será, durante quase século e meio o principal evento comercial do País. Nesse meio tempo, mulas agrupadas em grupos de transporte, conduziam cargas de todos os tipos e até pessoas – a maneira mais segura de se viajar de um ponto a outro do Brasil era juntar-se à comitiva de uma tropa arreada-, ligando entre si, no dia a dia, nossos raros centros urbanos com dezenas de povoados remotos, promovendo, em paralelo com a movimentação de mercadorias, um intercâmbio de ideias e ideais que construiu, de maneira pacífica, a integração territorial do país e a unidade nacional de forma absolutamente pacífica.
A longevidade da tropa cargueira ultrapassou em muito a da feira de
Sorocaba, entrando pelo século XX e sobrevivendo, ainda que em escala reduzida, inclusive à consolidação da era rodoviária que, em meados da década de 1950, com a implantação da indústria automobilística
nacional, a abertura das grandes rodovias federais e a consolidação da
Petrobrás, assume um papel de dominância incontrastável no mercado de transportes. Ainda hoje encontramos na tríplice divisa entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, tropeiros a ligar povoados remotos com os mercados que consomem os bens ali produzidos e suprem os seus moradores dos bens necessários.
Aplicando arranjos produtivos previamente testados na América espanhola, o tropeirismo brasileiro, aprimorou-os dando eles um caráter tipicamente empreendedor.
Tanto o tropeiro de mulas quanto o de tropas cargueiras eram donos de seus animais e chefes de seus camaradas. Trabalhavam por conta própria, o que faz deles os nossos primeiros empresários.
A feira de Sorocaba, em sua longa existência, exerceu um tríplice papel ainda não suficientemente estudado: viabilizou a acumulação de capitais que financiou a cafeicultura paulista e, por via de consequência, a industrialização que, no século XX, colocou São Paulo na vanguarda da economia nacional; gerou uma atividade organizada de financiamento à compra de tropas e ao pagamento dos tributos devidos pelos tropeiros no Registro de Sorocaba, cuja contribuição à estruturação do sistema bancário brasileiro não pode ser ignorada e fez com que as indústrias de tecidos de algodão em território paulista brotassem pioneiramente, de modo quase simultâneo, nas cidades do Vale Médio do Rio Tietê (Itu, Salto, Sorocaba, Tatuí, São Roque) e não na Capital como por vezes se imagina. Foi, portanto, a semente da vocação industrial de Sorocaba que, em nossos dias, atinge seu ponto de maior desenvolvimento.
Geraldo Bonadio
Fonte: O Tropeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário