Bem Vindo ao Blog do Pêga!

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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O antigo sistema de circulação

 

No vasto interior do Brasil, por quase quatro séculos predominou o “antigo sistema de circulação”, baseado na compinação de caravanas de muares, carros de boi e, nos cursos fluviais navegáveis, canoas. As tropas representavam a face mais visivel da circulação antiga, principalmente no Sul, São Paulo e Minas Gerais. A cena típica do Brasil escravista, no que se refere ao transporte de pessoas e mercadorias, era o lote de burros conduzido pelo tropeiro montado no cavalo madrinheiro da tropa.

O exame detalhado revela que o “antigo sistema de circulação” possuia diversos elementos interconectados, que davam concretude histórica a práticas culturais solidamente enraizadas na sociedade brasileira. Um primeiro elemento é a rede intricada e mutável de caminhos e estradas que cortava as regiões do país. Caminhos rústicos, percorridos com lentidão a pé ou em montarias, cheios de perigos e sinuosidades. Sobre eles, Capistrano de Abreu escreveu que “ um caminho destes oscila naturalmente antes de fixar-se, e assim não é fácil apurar qual foi seu primeiro rumo” (1963:273). Abertos a partir do litoral, os caminhos antigos devassaram o interior, muitas vezes convergindo para as regiões que abrigavam vilas e arraiais de maior dimensão, centros importantes de mineração e comércio.

Um segundo elemento do “antigo sistema de circulação” é a tropa de muares propriamente dita, dezenas de animais cargueiros conduzidos por poucos homens, genericamente chamados de tropeiros. No cotidiano das tropas, elementos simbólicos e materiais distinguiam o labor dos tropeiros, cujo fluxo pelos caminhos antigos era viabilizado pelo concurso dos afazeres de ofícios conexos. Nas margens das estradas, a existência de colonos, fazendas, vendas, ranchos, etc., garantia a trafegabilidade contínua, o ir e vir dos viajantes e dos tropeiros.

Um terceiro elemento do “antigo sistema de circulação”, elaborado paulatinamente e que adquire relevância com a intensidade crescente do trânsito em muitos caminhos, é a legislação sobre as estradas. Baixada pelos governos das Capitanias/Províncias, a execução desta legislação ficava a cargo das Câmaras de Vereadores. os regulamentos sobre a “polícia das estradas” determinavam as obrigações das autoridades, dos moradores e dos viajantes referentes ao uso, à abertua e à manutenção dos caminhos.

Os viajantes estrangeiros que percorreram Minas Gerais no século XIX deixaram muitos registros sobre as tropas, os tropeiros, as dificuldades das viagens, etc. Na região do Nordeste mineiro, onde as tropas resistiram até a década de 1960, eram chamados bruaqueiros os homens que levavam dois ou três animais cargueiros, em percursos curtos. A tropa regional típica era composta por lote de dez cargueiros, mais um cavalo (ou égua) madrinheiro. Na frente da caravana, seguia o burro de guia, munido de peitoral com seis cincerros e “pisteira” de pura prata, adornando a parte frontal da cabeça. Este animal, que carregava menos peso que os demais, possuia a função de marcar a viagem. Bem treinado, ele sabia os caminhos que a tropa percorria e impedia que os outros cargueiros passassem à sua frente nas encruzilhadas e nas paradas. O madrinheiro, montado pelo dono da tropa, andava bem adornado e solto no meio da tropa. O burro de coice, geralmente o mais carregado de todos os animais da tropa, seguia no fim da fila. Sua tarefa era a de empurrar os animais do meio que parassem de marchar. Fechando a caravana, aparecia uma pequena mula carregada com os apetrechos da cozinha e os mantimentos dos tropeiros.

Nas pequenas tropas do Alto do Jequitinhonha, a divisão de trabalho era relativamente simples. O dono da tropa – ou um seu auxiliar de confiança, chamado de arrieiro – cuidava da compra e venda de mercadorias, entabulando negociações com comerciantes e moradores do local de destino da caravana. Dessa forma, para indicar o prestígio, o dono da tropa andava todo arrumado. Ao aproximar-se do mercado ou rancho, tomava banho em um córrego e mudava de roupa. Os tocadores, geralmente dois, no máximo três homens, cuidavam dos animais, arriavam, carregavam e descarregavam os cargueiros, etc. Eram os responsáveis pela maioria das tarefas do transporte, que enchiam o tempo no decorrer dos caminhos e nas paradas, nos ranchos e mercados. O cozinheiro da tropa, geralmente uma criança, preparava o café e as refeições no pouso, além de ajudar os tocadores a carregar e descarregar os animais.

Na região no entorno de Diamantina, caracterizada pelo relevo bastante movimentado, a marcha diária dos cargueiros era de cerca de três léguas e meia (21 km); no máximo, quatro léguas (24km). Esta distância, uma vez percorrida nas primeiras horas da manhã, ensejava o pouso da tropa num rancho. No pouso, os tocadores descarregavam os animais, desarriavam-nos e raspavam seus pêlos, davam-lhes tratos ou pasto. As cargas eram arrumadas cuidadosamente num canto do rancho e cobertas com couros. A comida era preparada. No dia seguinte, a tropa retomava a viagem.

As pequenas tropas do Nordeste mineiro carregavam poucos tipos de apetrechos, a maioria feita em couro. A cozinha da caravana era composta de trempe (tripé desmontável com ganchos nas hastes) e panelas de ferro. As cangalhas dos cargueiros eram de madeiro, recebendo bruacas de couro ou os balaios de custé, fabricados com madeira trançada. Nas bruacas e nos balaios eram acondicionadas as cargas, cobertas com couro de boi. Cada burro da tropa recebia uma cangalha, o “dobro” (pano colocado como forro entre o costado do animal e a cangalha ou arreio), o peitoral (colar de couro que prendia a cangalha), a “retranca” (rabicho colocado atrás do animal, para impedir a cangalha de escorregar) e a “sopradeira” (uma espécie de bocal que impedia o animal de comer na estrada), as duas últimas peças também eram feitas com couro de sola.

A carga dos animais acostumados ao trabalho da tropa girava em torno de oito arrobas (120kg). Os mais fortes podiam levar até dez arrobas (150kg). Durante a marcha, era comum acontecer de burros ou mulas jogarem fora a carga ou de animais cairem paralizados, porque não suportavam o peso. Era preciso, nesses casos, que os tocadores descarregassem os animais, levantassem-nos e colocassem novamente a carga sobre eles; só então a viagem poderia ser retomada. Na verdade, o maior cuidado que o tropeiro devia ter era justamente com a acomodação das cargas sobre os animais. A cangalha, os arreios e as bruacas não podiam machucar o cargueiro, porque, do contrário, ele pararia e deitaria no meio do caminho. Conforme diziam os tropeiros, a cangalha não podia “pisar no animal”, provocando uma ferida no seu dorso. o dono da tropa deveria “olhar, bater, fofar a falha de maneira que a cangalha não tocasse no lugar que estava machucando”. Outro cuidado fundamental com os animais, para conservá-los sempre gordos e fortes, era o de fornecer-lhes alimentação apropriada: muito milho, fubá e cana, não bastando o capim dos pastos.

Convém frisar que, associada ao tropeirismo gaúcho, formou-se uma imagem idealizada do tropeiro, que enfatiza traços como o aventureirismo e uma indumentária rica e caracteristica, com o predomínio de peças de couro. Assim, o tropeiro gaúcho é descrito portando chapelão de feltro de abas viradas, camisa de pano forte, manta ou beata com abertura no centro, jogada sobre o ombro, botas de couro flexivel que chegavam até o meio da coxa. Não era assim que se apresentava o tropeiro da região de Diamantina na virada so século XIX para o XX.

No ano de 1899, em visita à cidade, H.D. Beaumont, Segundo Secretário da legação Britânica no Rio de Janeiro, escreveu sobre os tropeiros:

Os condutores são sempre negros ou mulatos em trajes leves, que caminham descalços e trazem muitas vezes bizarros chapéus de couro da Bahia (…) nunca exigem cama. Eles dormem em uma guarda com a sela de seus animais como travesseiros (O Município, ano IV, n. 230, 16 de junho de 1900, maço 43. Biblioteca Antônio Torres).

O diplomata inglês afirmou que, “segundo o hábito do Brasil”, os tropeiros não tinham cobertura alguma e viajavam descalços. Estas observações são corroboradas pelo depoimento de Joaquim dos Santos Júnior – para quem a “tropeirada andava toda suja, de tanto ficar carregando peso”, trajando roupas velhas e gastas – bem como pelo depoimento de Augusto Domingos Ribeiro – que indica que os tocadores utilizavam o “dobro” dos animais como cobertor e os couros que guarneciam as cargas como esteira para dormir.

Portanto, os tocadores das tropas do Nordeste de Minas Gerais possuiam vestimentas bem distinta de seus congêneres gaúchos, sem botas de couro e mantas grossas. Para aquecer nas noites frias, contavam apenas com o fogo acesso nos ranchos.

A alimentação dos homens das tropas da região de Diamantina era constituida por toucinho, carne de sol, feijão, farinha e café. Durante as viagens, os tropeiros raramente consumiam cachaça, que era usada, quando os dias estavam muito frios, como remédio para prevenir constipação; a cachaça também era empregada como alívio para a picada de insetos.

As tarefas penosas, pesadas e rotineiras dos tocadores, suas vestimentas pobres e o pouquissimo dinheiro de que dispunham afastam o tropeiro do Alto Jequitinhonha do modelo idealizado do tropeiro do centro-sul do Brasil.

Atividades complementares deram suporte ao vai e vem dos tropeiros, O “antigo sistema de circulação” fez surgir ocupações coma a de rancheiro, ferrador, peão ou amansador e acertador. O ferrador pregava as ferraduras nos animais da tropa e também atuava fazendo vezes de veterinário. O peão era o amansador de equinos e muares à moda do sertão, necessário para transformar os animais “chucros” em potenciais cargueiros das tropas. O trabalho do peão era finalizado pelo acertador, homem hábil e paciente, que ensinava andaduras ao animal e educava-lhe a boca ao contato de freio (CALÓGENAS, 1927).

Porém, a mais destacada das atividades conexas ao tropeirismo era a do rancheiro, istoé, do proprietário de rancho. O rancho era um abrigo que recebia os tropeiros e as cargas, consistindo de um galpão aberto ou com paredes de meia altura. Ao redor do rancho, havia esteios para amarrar os animais. Ao lado do rancho, um pequeno cômodo de comércio, explorado pelo rancheiro e sua família. Os tropeiros pagavam o milho e o pasto consumido pelos animais, conforme uma taxa cobrada sobre o número de cangalhas (ARNO, 1949:116). A propósito dos ranchos existentes nos caminhos que levavam a Diamantina, H. D. Beaumont escreveu:

O tratamento (…) não é luxuoso, porém, em muitos destes ranchos o asseio é perfeito. Durante nossa viagem, com quinze animais e três camaradas, o dispêndio de rancho montou entre 40 e 50 mil réis. Eis a conta que foi paga em um rancho da comprida estrada em uma noite (…):

40 litros de milho            6$800

1 garrafa de cachaça      1$500

1 garrafa de cerveja        3$000

Jantar para 4 pessoas    10$000

Almoço para 5 pessoas  3$000

3 camas                       1$590

Total                             28$000

(O Município, ano IV, n 230, 16 de junho de 1900, Biblioteca Antônio Torres)

Ao prestar serviços para os viajantes e fornecer abrigo para os tropeiros e pasto para os animais, os ranchos eram parte da “infra-estrutura” necessária para o funcionamento do “antigo sistema de circulação”. Como observara Capistrano de Abreu, os ranchos surgiram espontaneamente no entorno dos caminhos mais movimentados, pois:

a experiência ensinou certos povoadores a estabelecerem-se pelos caminhos, a fazerem açudes, a plantarem mantimentos, que não precisavam ser exportados, porque se vendiam na porta aos transeuntes, a comprarem as reses transviadas ou desfalecidas que, tratadas com cuidados, ou serviam à alimentação ou revendiam com lucro (op. cit., p.285).

Os caminhos mais movimentados e seguros eram justamente aqueles cercados por fazendas e sítios, nos quais os viajantes poderiam encontrar hospedagem, algum comércio e lavouras. Víveres a baixo preço, serviços e apoio para as caravanas.

Fonte: História e Meio Ambiente, Marcos Lobato Martins

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