Bem Vindo ao Blog do Pêga!

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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Alma dos caminhos

 

A música de Elomar e os livros de Abílio Barreto e Hugo Carvalho Ramos imortalizaram a saga dos tropeiros

Quem pega estrada entre o interior e o litoral do Brasil, passa por pesados caminhões. Do período colonial, até meados do século passado boa parte do intercâmbio entre o interior e o litoral da América portuguesa era feito pelas tropas, que foram muito atuantes no período em que o Alto Sertão da Bahia desenvolvia uma série de atividades econômicas como a mineração, a plantação do algodão, a policultura e a pecuária. Levando produtos para as regiões vizinhas, à capital e ao seu recôncavo, elas duraram até meados do século XX.

O tropeiro era, ao mesmo tempo, comerciante, emissário oficial, correio, intermediário de negócios, portador de bilhetes e recados, aviador de encomendas e receitas. Para dar conta desse legado, a literatura e letras de músicas oferecem um amplo painel da saga de quatro séculos desses heróis das estradas de areia e de barro.

Um dos que se valeu do tema como fonte de inspiração foi o cantor e compositor Elomar no seu disco Na quadrada das águas perdidas (1979) na passagem do Auto do Tropeiro Gonsalin, mas muitos outros criadores, como Chiquinha Gonzaga (1847-1935), eternizaram canções como “A partida do tropeiro”, em parceria com Catulo da Paixão Cearense (1863-1946). Os escritores Afonso Arinos, Abílio Barreto, Carlos Nascimento Silva e muitos outros também registraram a vida e os costumes dos tropeiros.

A obra de Elomar é um valioso fio condutor pelo fato do compositor ser um autêntico representante do Alto Sertão baiano e por suas canções se basearem nas experiências dos tropeiros que ele conheceu quando criança. O Auto do tropeiro Gonsalin reúne mais de 30 composições na temática do tropeirismo e fala da vida desse tropeiro. Bastam trechos de algumas delas para ilustrar o cotidiano e a importância do tropeiro, a realidade das estradas, sua faceta de comerciante e a de grande responsável pela circulação das informações.

Em “Tirana”, vê-se que o sonho do tropeiro que rondava o Alto Sertão baiano era ter uma tropa grande, completa, equipada e luxuosa, para que pudesse um dia ir a Portugal encontrar-se com o rei. De acordo com Elomar, o tropeiro via Portugal como uma praça, um povoado onde havia uma feira semanal, como ocorre em muitas cidadezinhas do interior nordestino. “Das coisa de minha ceguêra aquela qui eu mais quiria/ formá u’a tropa intêra e arribá no mundo um dia/ cabeçada de uma arrôba vinte campa de arrilia/ cruzêta riata nova rabichola e peitural/ e arriça fazendo ruaça/a tropa na bôca da praça/ do Rêno de Portugal.”

As letras das músicas do Auto, mostram a grande riqueza do dialeto falado pelos tropeiros: os registros coloquiais, as expressões populares, sobretudo, os vocábulos e expressões que permeavam suas relações sociais. “Istrada rial”, segundo o compositor, é a estrada por onde passou o rei e que havia sido pavimentada pelo ouro da coroa. “Cabeçada de uma arroba vinte campa de arrelia” e “cruzeta riata nova rabichola e peitoral” são termos que se referem aos recursos da tropa. “Buneca” é o animal que vai à frente.

A poesia de Elomar, além de falar dos anseios do tropeiro, reflete também as dificuldades da vida estradeira. Como a história do tropeiro Gonsalim se passa no final do século XIX, o autor evoca a seca de Noventinha, uma das mais inclementes que já ocorreu no sertão nordestino. Essa seca fez diminuir o fluxo de tropas em todo o interior da Bahia, mas a escassez de alimentos não era um fenômeno localizado, como afirma o historiador Erivaldo Fagundes Neves, em sua tese “Da sesmaria ao minifúndio” (1995). Ela não só atingiu a Bahia como outros estados nordestinos, e provocou um aumento no preço das mercadorias, forçando a população a se deslocar na busca de mantimentos para sobreviver.

A vida do tropeiro era de chegadas e partidas constantes. Trilhas, caminhos e estradas faziam parte do seu cotidiano e por isso ele mantinha uma relação especial com os seus companheiros de atividade, como arrieiros, ferreiros, ferradores e comerciantes de couro e de corda. Em outro trecho, dois tropeiros se encontram na estrada e conversam sobre a seca que castigava o sertão. Além do fluxo de informações, o que mais se nota no diálogo é o uso de um dialeto tipicamente catingueiro: “Ô Quilimero assunta meu irirmão/ iantes mermo que nóis dois saudemo/ eu te pregunto naquele refrão/ qui na fartura nóis sempre cantemo/ na catinga tá chuveno/ ribeirão istão inchendo/ na catinga tá chuveno/ ribeirão istão incheno.”

De acordo com Elomar, Quilimero foi tropeiro nas margens do rio Gavião, região de Vitória da Conquista, no período da seca de Noventinha. Forçado pela seca, ele teve que abandonar sua rota costumeira – que ia do sudoeste da Bahia ao norte de Minas – para buscar farinha em Nazaré, no Recôncavo Baiano. No caminho, encontrou-se com Gonsalin e sua tropa, que vinham de Salvador, já de retorno para o rio Gavião, ansioso por notícias do sertão.

A composição das tropas variava de acordo com a região, mas um modelo que ficou marcado refere-se àquelas típicas do Vale do Paraíba, que trazia na frente o madrinheiro, garoto de até doze anos que guiava os animais. O terceiro e o quinto burro carregavam jacás, cestos usados para o transporte de carga – na Bahia, panacuns. O tocador ou tropeiro, que ajudava a conduzir o grupo, seguia a pé. Em primeiro plano, ia o arreador, responsável pelo comércio de carga. E, fechando a tropa, vinha o culatreiro, o animal preferido dos salteadores. O culatreiro diz-se da função de um tropeiro que vinha conduzindo os animais no fim da tropa, ou do animal do grupo que anda sempre atrás do rebanho. Era o preferido dos salteadores porque sem o mesmo a tropa perdia a guia, se desorganizava e ficava mais fácil de roubar os carregamentos].

No conto O tropeiro, de Abílio Barreto (1883-1957) observa-se o folclore que girava em torno das mercadorias levadas pelas tropas: “Belos tempos aqueles das minhas viagens com tropa do Calhau por êsses Sertões afora, onde não se falava senão nas chitas, nos colares, na iaiá de ouro, nos grandes lenços estampados, nas rendas de bilros da Bahia, no pano da costa e em mil outras coisas que nos traziam os canoeiros. Ao Calhau vinha ter tudo isso e dali carregava eu tudo isso por estes mundos ... (...) Éramos, como disse Fulgêncio, um grande entreposto comercial do Norte de Minas e do Sul da Bahia.”.

Outro exemplo literário é o livro Tropas e boiadas (1917), de Hugo Carvalho Ramos (1895-1921), que vê a questão através de imagens que ficaram retidas na memória do escritor goiano. Nele, o autor fala de quando os tropeiros chegavam da labuta e tinham que desarmar toda a tropa para poderem descansar: “O tropeiro empilhou a carregação fronteira aos fardos do dianteiro, e recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas do alpendre. Abriu após um couro largo no terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto da tropa ruminava em embornais a ração daquela tarde”.

As páginas de Tropas e boiadas, além de espelharem um modo de vida regional, repleto do mais vivo realismo, valem-se da cultura típica da região Centro-Oeste. É clara a semelhança entre a linguagem utilizada por Hugo de Carvalho e aquela entoada pelo baiano Elomar em No Auto do Tropeiro Gonsalin. De certa forma, pode-se dizer que os tropeiros e aqueles que cantaram e contaram suas histórias no Alto Sertão da Bahia têm uma coisa em comum: encurtaram as distâncias do Brasil, integrando suas culturas.

Autora: Jurema Mascarenhas Paes

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