Depois de muitas tentativas e alguns meses de espera, consegui falar com Betinho numa tarde quente em Goiânia. Betinho trabalha atualmente em uma fazenda no município de Piracanjuba, em Goiás, e pouco vem à capital para ver a família e resolver seus assuntos pessoais. Sua casa, no bairro de Campinas, o mais antigo da cidade, foi construída onde outrora existiam muitos terrenos baldios e pouco movimento. Hoje a rua onde fica é um eixo de transporte, movimentada e não foi muito fácil encontrá-la. Betinho, como os outros, foi uma indicação de Neném Prado. Encontrei-o na companhia de Ivo, companheiro de viagens de muitos anos e foi lá, na sala decorada por berrantes na parede, que conversamos:
- Betinho, eu queria saber de você as origens, como tudo começou ...
- Eu me chamo Idalberto Blanco Nunes e nasci em Buriti Alegre (sul de Goiás) em 21 de maio de 1942. Quer dizer, esse ano faço 65 anos ... Eu comecei a viajar com 8 anos de idade, tinha um tio que era peão de boiadeiro, eu morava com ele e aí, com 8 anos ele me levou prá fazer uma viagem ... foi minha primeira viagem como peão ...
- Igual ao Vandes, quando fiz a entrevista com ele eu soube e fiquei surpreso com a idade ...
- Pois é, lá fui eu ... foi uma viagem com o comissário Juca Lalau, tocando uma boiada do João Teimoso ... Nós pegamos o gado em Água Limpa prá entregar em Salto de Avaiandava, perto de Promissão (SP). Foram umas 35 marchas ... Nessa viagem, teve um troço que me deixou envergonhado, eu nunca esqueci ... me deram uma égua prá montar e essa égua tinha a orelha torta, nossa mãe, eu ficava muito envergonhado daquilo ... e, prá piorar, quando a gente chegou no rio Pedra Branca, caiu uma chuva muito
forte, eu tava na culatra - eu ficava com os bois cansados ou machucados lá trás – e aí a boiada foi se afastando de mim e começou essa chuva, eu com aquelas reses e pronto: com chuva, o gado vira prá trás e começa a voltar e eu não conseguia fazer eles ir prá frente, fiquei sozinho ali, com 8 anos de idade, sem conseguir fazer o gado ir prá frente. Passei muito medo. Sorte que meu tio deu por falta de mim, voltou e me ajudou.
- Depois disso, na volta, você continuou a estudar ?
- Voltei, mas eu tinha invocado com boiada. Daí, não parei mais de viajar, larguei os estudos e continuei. Quando eu tinha uns 15 anos, briguei com meu tio, saí da casa dele e fui morar com um amigo, o Canjica, larguei de viajar com meu tio, fiz muitas viagens com seu Alcides, Induque, Claudivino, Geraldinho Bento ...
- Quando você veio para Goiânia ?
- Vim prá Goiânia com uns 17 anos e fui trabalhar com o Geraldo Catalão, comissário. Trabalhei com ele uns 8 anos.
- As viagens, continuavam para São Paulo ?
- É, era tudo prá São Paulo. Depois fui trabalhar com Nego Cícero, viajei muito tempo com ele, com tropa dele. Era tudo viagem de Goiás prá Vila Rica, no Mato Grosso. Atravessava o rio Araguaia no São Félix (S. Félix do Araguaia, MT) ou em Santa Terezinha ... a boiada passava toda na balsa, o rio era muito largo.
- E quando é que você virou comissário ?
- Ah, eu comprei uma tropa de 20 burros do Nego Cícero, com dinheiro de um lote que eu vendi. Eu tinha comprado esse lote, aqui em Goiânia, com economia feita com o trabalho na estrada ... Aí eu passei a fazer viagens para o Bordon (Frigorífico Bordon), pegava gado dentro de Goiás e Mato Grosso e levava prá São Miguel (S. Miguel do Araguaia, Goiás). Fiquei muitos anos nisso ...
- E depois ?
- Só viajando ... teve uns meses que fiquei dando pastoreio prá umas 1800 vacas lá no Mato Grosso, parei de viajar, mas peguei uma doença, a tal da “caladinha”, a gente fica tão doente que não consegue falar, tive que vir prá Goiânia, fiquei internado, deu trabalho ... Depois de curado, voltei a viajar.
- Eu sei que você fez uma sociedade com Neném Prado, como foi isso ?
- É, depois disso tudo eu juntei minha tropa com a do Neném, ele comprava o gado e eu viajava, uma hora com minha tropa, outra com a tropa dele. Espera aí ... eu estou esquecendo que, antes de comprar minha tropa eu fiz muitas viagens com seu Álvaro, eu contava o gado prá ele, fiz muitas viagens com seu Álvaro pro norte e prá São Paulo ...
- Que bom você falar nisso, eu tinha esquecido que Seu Álvaro foi comissário por muito tempo. Quando eu o conheci, ele já estava trabalhando como peão de boiadeiro para o Neném Prado, acompanhei algumas boiadas com seu Álvaro na culatra, no início dos anos 90 ...
- Pois então, eu é que contava os bois prá ele. Teve uma viagem que fiz, foi a maior boiada que levei, foram 1791 bois de Catalão prá Novo Horizonte (SP), foram umas 60 marchas.
- Quase dois mil bois ? Isso era muito raro, né ?
- Era, dava muito trabalho prá contar, prá fechar o gado, foi uma canseira. Bom, mas voltando pro Neném Prado, trabalhei de sociedade com ele até quase parar. Só fiz mais uma viagem, a última, foi com Neném da Carmelita, foram 38 marchas, deu prá eu ganhar 4.000 reais ... você vê, hoje eu ganho 600 por mês na fazenda que trabalho e em 2002 eu ganhei 4.000 reais em 38 dias de serviço ... a gente sente falta mesmo da estrada.
- E a família, Betinho, quando você se casou ?
- Eu casei em Goiânia, em 74. Tive duas filhas, uma já casou e a outra é essa que mora comigo. Comprei esse lote aqui a prestação, fiz um barracão primeiro, fui morando e depois construí a casa aos poucos.
- E as histórias das viagens, os casos ? Tem alguma lembrança especial ?
- Rapaz, tem uma viagem muito triste, muito fúnebre ... quando eu era menino em Buriti, fiz uma viagem prá Promissão com Valmir Inácio, cunhado de Zé da Neta. Em Frutal (MG), num pouso que a gente ia fazer, quando o peão foi entrar no curral que a gente ia fechar o gado, tinha um homem morto, pendurado numa árvore ... foi terrível. Mas o pior foi na volta: o caminhão que a gente vinha tombou, perto de Frutal e um companheiro nosso morreu. Quer dizer, a viagem tava agourenta, né ?
- É, essa foi triste ... e alguma viagem especialmente boa ?
- Ah, na época da Bordon, eram as melhores viagens que eu fazia ... tinha pouca despesa, sem carro prá atrapalhar, tudo no sertão, muita pescaria ... era muito bom. Mas, ainda teve uma viagem muito ruim também. Foi numa com Nego Cícero pra Vila Rica, no Mato Grosso. Dois peões adoeceram, o Luis Bento e o Dito Lázaro, ficaram muito mal. Quando chegamos em Porto Alegre (cidade do MT), eles comeram muita melancia, atacou o fígado, a malária também e aí os dois morreram ...
- Viagem boa é sempre longe do asfalto ...
- Pois é, eu não gostava de jeito nenhum. Quando a gente viajava pelo asfalto e tinha que pousar na beira da rodovia, eu tinha uma mula muito boa, de nome Brahma, eu deixava ela arriada e dormia no pé dela. Se algum carro espantasse a boiada, eu montava no ato e saía pra recolher o gado. Eu dormia e ela ficava lá, quietinha, do meu lado. Aliás, a derradeira coisa que me cansou e me fez para de vez foi quando um carro atropelou a boiada e quebrou 3 bois ... foi um descuido do bandeira (o sinalizador da pista), foi a pior viagem do mundo. Depois dessa eu parei.
Betinho viajou até 2002. Desde então trabalha numa fazenda em Piracanjuba, em Goiás, tomando conta de mil e duzentos bois. Deixei-o no início da noite quente de verão, na companhia de Ivo Duarte de Almeida, companheiro de muitos anos de viagem, hoje também aposentado. Ambos demonstram ter excelente saúde e uma disposição imensa para trabalhar.
Goiânia, março de 2007.
Fonte: Foto Memória
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