Bem Vindo ao Blog do Pêga!

Bem Vindo ao Blog do Pêga!

O propósito do Blog do Pêga é desenvolver e promover a raça, encorajando a sociedade entre os criadores e admiradores por meio de circulação de informações úteis.

Existe muita literatura sobre cavalos, mas poucos escrevem sobre jumentos e muares. Este é um espaço para postar artigos, informações e fotos sobre esses fantásticos animais. Estamos sempre a procura de novo material, ajude a transformar este blog na maior enciclopédia de jumentos e muares da história! Caso alguém queira colaborar com histórias, artigos, fotos, informações, etc ... entre em contato conosco: fazendasnoca@uol.com.br

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Depoimento - Seu Alcides

A entrevista com Seu Alcides foi fruto da indicação de Neném Prado, que me deu seu telefone e a recomendação de que se tratava de “um dos mais velhos Comissários de Goiás”. Encontrei seu Alcides numa manhã ensolarada de setembro, sentado na porta de sua casa, no Jardim Goiás, bairro da capital. Conversamos na cozinha da sua casa, comendo quitanda de amendoim.

image

- Seu Alcides, quantos anos o senhor tem ?
- Eu tenho quase 82 anos, sou de 1924 ... nasci em 25 de dezembro.
- Natalino, né ? E onde foi que o senhor nasceu ?
- Lá em Buriti Alegre (sul de Goiás), vivi lá até os 30 anos de idade ...
- E na sua família tinha alguém ligado a boiadas ?
- Não, não, eu não tinha família, meus pais morreram muito cedo ... fui criado nas fazendas, por vizinhos ... daí eu comecei a mexer com viagem, como peão de boiadeiro, com 11 anos. Eu tinha estudado até os 10 anos, daí larguei, comecei a viajar.
- Buriti Alegre era um centro de boiadas e de comissários, né ?
- É, tinha muito, era fácil arranjar trabalho nas viagens ... naquela época (década de 30), era tudo viagem prá Barretos (SP).
- E o senhor, tão novinho, como se virava nessas longas viagens ?
- Os peões me ajudavam ... eu comecei como ajudante de cozinheiro, acendia fogo, lavava o arroz, tudo isso. A comitiva ainda não tinha carroça, era tudo nas bruacas de carga, a gente viajava só em estrada boiadeira. Depois fui prá lida, fui mexer com o gado mesmo ...
- E o trajeto, como era ?
- A gente saía de Buriti, ia prá Itumbiara, Monte Alegre, Prata, Nova Esplanada e depois Barretos, levava uns 22, 23 dias.
- Quanto tempo ficou nisso ?
- Eu comprei minha primeira tropa com 16 anos, comprei fiado, 20 burros mais um cavalo madrinha, fiquei 8 anos nisso, só fazia viagem de Buriti prá Barretos. Às vezes pegava boiada em Itaberaí, Araçu (centro-norte de Goiás). Depois, fui morar em Barretos, morei lá quase dois anos, tentei a vida lá mas não deu certo ... aí voltei prá Goiás, mas vim morar em Goiânia. Comprei outra tropa em Goiânia ... aliás, eu negociei muita tropa, vendi muito animal e comprei muito.
- Ganhava um dinheiro também nisso ...
- Nada, eu fazia mais era por gostar, às vezes ganhava, às vezes não ... negociei mais de 400 burros e mulas nesse tempo todo ... teve uma mula que eu gostei muito, foi o melhor animal que tive, boa de sela, boa prá lida, essa eu não vendi não, fiquei com ela 20 anos, era uma mula queimada (cor cinza escuro), grande ...

image

- E casamento, família ? ...
- Eu casei em Buriti, tinha 18 anos, tive uma filha que vive hoje em Barretos. Depois eu casei pela 2ª vez em Goiânia, tive outro filho, que é médico, vive aqui mesmo em Goiânia, hoje ele tem 44 anos ...
- E em Goiânia foi mais fácil que em Barretos ?
- Ih, era muito fácil, contratava viagem sempre lá no Café Central, eu cobrava 2 cruzeiros por marcha depois foi aumentando, quatro, seis cruzeiros por marcha ...
- E quantos peões o senhor levava nas viagens ?
- Dependia. Se fosse 1000 bois, levava 8 peões, mais de 1000 bois levava 10. Eram 2 culateiros, 2 chaveeiros, 2 segundeiros (foi a primeira vez que ouvi a expressão “segundeiro”, para designar uma posição de trabalho na boiada), 2 premereiros e 1 ponteiro.
- E o gado, que tipo de gado era ?
- No começo, quando eu ainda estava lá em Buriti, era gado mestiço, gir, misturado. Depois, lá por 1950, começou a aparecer o Nelore ...
- E essas viagens de Goiânia, iam prá onde ?
- Eu levei muita vaca de Goiânia pro norte, pro Mato Grosso ... Saía de Goiânia, ia prá Itaberaí, São Miguel, São Félix ... eu fiz muita estrada pros peões e nunca peguei malária, nunca vi uma onça. Também fiz muita viagem pela Bahia, levava a tropa de caminhão até perto de Paracatu (MG), depois pegava o gado e ia prá Côco, na Bahia, Barreiras, Posse (já em Goiás), Brasília ... prá Bahia era uma viagem muito difícil, muita areia, pouca água ...

image

- Bom, com tantos anos de vida e de estrada, enfrentou algum problema sério nas viagens ?
- Não, não. Tinha era muita briga de peão, isso era sempre ... mas nunca teve nada mais sério, ninguém nunca se machucou. Também nunca perdi uma rês, eu tinha um arribador muito bom, era o João Pórvra, trabalhou uns 15 anos prá mim, morreu faz uns 6 anos ... muito bom mesmo.
- E teve alguma viagem muito boa ?
- Teve, fiz uma viagem em 82, de Anicuns (GO) prá Araguaína (atual Tocantins), eram 1200 cabeças, foram 102 dias de viagem, lembro que ganhei muito dinheiro, na volta comprei essa casa aqui ...
- Alguma muito ruim ?
- Foi uma viagem de Paracatu (MG) prá Barretos, em 1951. Eu saí em 5 de janeiro e cheguei em 30 de maio ... morreu muito boi, deu aftosa, morreram mais de 200 reses, naquela época não tinha vacina. Levei o maior prejuízo, o boiadeiro só me pagou 35 marchas, ele ficou com o prejuízo dos bois que morreram, mas me pagou só as 35 marchas, que era o tempo médio que dava de viagem. Aí eu tive que vender meus 31 burros prá pagar os peões, tive que começar tudo de novo ... a gente mais novo tem mais disposição, é mais fácil, eu consegui começar de novo.
- Até quando o senhor viajou ?
- Depois daquela viagem boa de 82 eu fiz muita viagem pequena, parei em 94, 95, não lembro direito ...
- O senhor trabalhou até os 70 anos, mais ou menos ...
- É, teve um tempo que morei numa fazenda em Varjão (GO), foi em 1971 mais ou menos, fiquei uns 2 anos lá, mas o resto da vida foi viajando ... eu tive que parar porque coloquei uma ponte de safena, duas mamárias ... agora só fico aqui sentado, quieto ...
Seu Alcides não tem aposentadoria e disse que já tentou conseguí-la como trabalhador rural, mas, segundo ele e sua esposa, d. Laurita, a justiça entende que o comissário de boiada “faz comércio”, não sendo, portanto, uma atividade tipicamente rural ...
Goiânia, setembro de 2006

Fonte: Foto Memória

Nenhum comentário:

Postar um comentário