O Globo
A seca dos últimos dois anos agravou a situação de abandono dos jumentos no Nordeste. Companheiro do sertanejo no trabalho duro e ícone da resistência no semiárido, o jumento ficou, na expressão dos próprios nordestinos, “sem serventia”. De nada lhe adiantou o costume a longas jornadas, pouca água e comida escassa. Descartado no transporte de cargas, idosos e crianças, centenas deles estão sendo expulsas das fazendas, colocadas do lado de fora das cercas, ao deus-dará. Com fome e sem ter onde ficar, perambulam pelas estradas em busca de comida. Provocam acidentes graves. Morrem e causam mortes.
— A serventia dele agora é pouca. Aqui não tem mais roça, só pasto. E o jumento estraga o pasto, compete com o boi pela comida. O grandes (fazendeiros) não querem mais, e os pequenos não têm nem lugar onde pôr. Antes ele prestava para carregar carga, agora todo mundo tem seu carrinho. A gente fica com pena do bichinho, mas fazer o quê? — lamenta Luiz Gonzaga Borges Pereira, de 59 anos, dono de um armazém à beira da MA-122, no município de Buritirama, no Maranhão.
A situação dos jumentos no Nordeste se arrasta desde que as motocicletas se popularizaram, vendidas a prestações de R$ 60 até em lojas de móveis da região. A imagem da família que ia às compras na cidade e voltava levando as mercadorias e as crianças no lombo do jegue não existe mais. E ninguém faz questão de se lembrar da “Apologia ao jumento”, que conta a saga do maior amigo do sertão na voz de outro Luiz Gonzaga, o famoso: "Arrastou lenha... madeira... pedra, cal, cimento, tijolo... telha. Fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem... fez a feira e serviu de montaria. O jumento é nosso irmão...”
Hoje em dia, nem mesmo onde ainda se usam animais, o jumento encontra espaço. Na montaria nos pastos, a preferência sempre foi pelo cavalo, mais ágil e imponente. Para puxar a carroça, o tamanho adequado é o do burro. Fruto do cruzamento do jumento com a égua, o burro é tão forte quanto o pai, mas tem o porte da mãe.
— É tanto jumento abandonado que a gente não sabe o que fazer. É no Nordeste inteiro. E é muito difícil conseguir ajuda, porque a maioria das ONGs de animais cuida de cães e gatos — afirma Geuza Leitão, presidente da União Internacional Protetora dos Animais (Uipa) no Ceará.
No Ceará, 800 jumentos apreendidos por mês
Largado à própria sorte, o bichinho de olhar triste e desamparado virou estatística de trânsito. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, o Nordeste registrou 1.783 acidentes com atropelamento de animais nas estradas em 2012. O estado com maior número de casos foi a Bahia, com 429 acidentes que resultaram na morte de 18 pessoas no ano passado. A Bahia é também o dono do maior rebanho de asininos do país — 254.277 cabeças, segundo dados do IBGE de 2011. Em Pernambuco, o atropelamento de animais na pista causou 16 mortes em 2012. No Piauí, foram 260 acidentes, com cinco mortes. Na maioria das vezes, o animal em questão é o jumento.
— Com outros animais, acontece menos. Perder uma vaca é perder carne, leite, manteiga. Cavalo é caro, tem custo — diz Pedro Paulo Bahia, assessor de comunicação da PRF em Brasília. O problema é tão grave que a Polícia Rodoviária Federal e os Detrans estaduais passaram a criar estruturas para recolher os jumentos nas rodovias. No Ceará, o Detran apreendeu 11 mil jumentos no ano passado. Este ano, a média tem sido de 800 por mês. Diariamente, 13 caminhões de resgate fazem a ronda nas estradas. Os animais apreendidos são levados para a Fazenda Paula Pessoa, no município de Santa Quitéria. O local já chegou a abrigar dez mil jumentos, mas tem hoje menos da metade. Muitos morreram ou precisaram ser sacrificados por contraírem doenças.
— Os animais sadios, como cavalo e burro, são doados para associações. Bois, vacas e carneiros vão para entidades beneficentes, para alimentação. Mas, o jumento, ninguém quer — lamenta João Carlos Macedo, responsável pelos regionais do Detran-CE. Raimundo Torquato, administrador da Fazenda Paula Pessoa, conta que muitos jumentos chegam machucados, com as pernas quebradas, sem casco ou até mesmo com orelhas e rabo cortados. Recebem tratamento veterinário, mas ali não há pasto abundante. Ao contrário, o lugar é de seca. Para ajudar a alimentá-los, a Uipa do Ceará conseguiu doação da ONG francesa One Voice e compra milho.
O apoio internacional só veio depois da divulgação de um acordo com a China, que queria comprar 300 mil animais por ano do Brasil para comercialização e industrialização da carne e derivados. O anúncio gerou protestos de entidades protetoras dos animais, e o acerto não vingou.
— Seria um extermínio — diz Macedo.
Segundo o IBGE, o Nordeste tem 877.288 jumentos, quase a totalidade (90%) dos representantes da espécie no país. Apenas Maranhão, Ceará e Piauí ainda têm mais de cem mil animais cada um.
Alexandre Cruz, chefe de policiamento e fiscalização da PRF no Piauí, diz que o órgão encaminhou a Brasília pedido para contratação de laçadores e equipes para recolher os animais que perambulam nas estradas por todo o Nordeste.
— Quando a gente recolhe vaca ou cavalo, o dono vai atrás. Quando é jumento, larga lá — conta Cruz.
Só no ano passado foram apreendidos 2.500 animais que vagavam pelas estradas federais que cortam o Piauí. A maioria jumentos. Não é raro que sejam novamente soltos dois ou três dias depois e voltem a vagar pelo asfalto. “O jumento é bom... O jumento é sagrado... o homem é mau”, dizia a música de Gonzagão.
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