Para um comissário de boiadas, Laudicione Antonio de Vasconcelos é um jovem. Nasceu em 22/11/51, em Anicuns, Goiás. Mora em Jussara, cidade a noroeste de Goiânia, distante 220 km da capital do estado. Encontrei-o de folga, descansando de uma viagem recém feita, e conversamos na varanda de sua casa, no bairro Araxá, em Jussara, numa sexta-feira de outubro de muito calor. Forte, bem conservado, Laudicione tem a prosa fácil e cativante. Nossa conversa:
- Comecei a viajar com meu pai, ele era comerciante e tinha tropa também, fazia viagens de vez em quando, tinha comércio também, trabalhava com as duas coisas ... Em 1966 viemos para Jussara, eu tinha 14 para 15 anos, mas eu já viajava nas férias com ele desde os 12 anos de idade. Quando nós chegamos em Jussara, parei de estudar e comecei a viajar de peão com vários comissários ... Eu gostava muito e logo comecei a contar boi ...
- Esse é o caminho para se tornar comissário, né ?
- É. Eu viajei assim, de peão, até mais ou menos 1980, quando peguei uma tropa de meia (como sócio) e comecei a viajar de comissário. Essa tropa, deixa eu ver, fiquei com ela uns 2 anos mas logo comprei uma tropa só pra mim ...
- Vamos voltar um pouquinho: você mora em Jussara desde 1966, então ?
- Não, não. Eu morei em São Luis de Montes Belos (a oeste de Goiânia) de 1989 a 1991. Fui tentar lá mas voltei para Jussara ...
- E em Anicuns, quando você era criança, para onde eram as viagens ?
- Ah, lá a gente pegava muito boi em Uruaçu, Itapaci, Porangatu (todas no norte de Goiás) e trazia para Anicuns, onde engordava gado, isso foi em 1963, 64, por aí ...
- É, nessa época já existiam invernistas em Goiás, o engordador de boi ...
- Pois é, antes não tinha, né ? Eu lembro de uma viagem de Porangatu pra Anicuns com uma boiada de 1.110 bois, a boiada pegou aftosa, foi uma trabalheira, uma canseira, naquela época era contar com a sorte, não tinha vacina, essas coisas.
- Perdeu muito gado ?
- Não, não, não morria não, né ? Só dava aquela doença, a viagem atrasava muito ... Depois disso, depois que vim morar em Jussara, comecei a viajar pra São Paulo. Até pouco tempo atrás meu pai viajava ainda, ele morreu tem uns 4 anos, morreu com 74 anos ...
- Viajou até os 70 anos ?!
- É, viajou. Depois, começou a perrengar (adoecer), essa coisa de velho, aí foi indo até morrer ... Mas eu já viajei muito para o Mato Grosso, lá pro Xingu, saindo daqui, de Jussara. Eu vou muito mesmo é pra São Paulo, é um trajeto, quer ver, vou pra São Luis (de Montes Belos), pego Acreúna, Santa Helena, Lagoa do Bauzinho, Riverlandia, Quirinópolis, São Simão (todas em Goiás), daí entro em Minas, vou pra Limeira do Oeste, Alexandrita, Iturama, Ponte da Água Vermelha, Fernandópolis (já em SP), Indiaporã, São João do Marinheiro, Cardoso e Riolandia, onde é a fazenda da entrega da boiada ...
- Quanto tempo de viagem ?
- Umas 53 a 55 marchas.
- Onde fica essa Lagoa do Bauzinho, em Goiás ?
- É ali no cruzamento da rodovia que vai de Santa Helena para a BR que liga Rio Verde a Itumbiara.
- Laudicione, você é o comissário mais jovem que já conversei. Dos que ainda viajam, só conheci você e o João Pereira, lá de Jataí, mas você é mais novo. Hoje, na tropa, a formação ainda é de 8 peões ?
- É. Vai o cozinheiro, eu, 1 ponteiro, 2 premereiros, 2 chaveeiros e 2 culateiros.
- E quem faz a arribação (pega boi que fica para trás) ?
- Não existe mais boi de arribada ... só viajo em corredor, em estrada de asfalto e, quando é em estrada de terra, é tudo corredor, tem cerca dos dois lados ... A dificuldade é a viagem no asfalto, é muito perigo ... mas boi não fica de arribada mais não.
- Então, você só pousa em asfalto, em corredor ?
- Não, ainda tem muito pouso (local para descanso, passar a noite). Goiás tem uns 15 pousos, que são todos pagos. Também ainda tem alguns em Minas e São Paulo ... Agora, onde não tem pouso, ainda faço muito curral de corda. Quer ver, numa viagem dessas pra São Paulo, eu faço umas 32 marchas ainda dentro de Goiás, umas 15 em Minas e umas 7 já em São Paulo. Então, em Goiás, por exemplo, são 15 noites em pousos e 17 em curral de corda.
- Essa estrutura dos pousos ainda é boa ?
- É, boa. Tem o pouso do João Coito em Quirinópolis que é muito bom. A gente paga 50 ou 60 reais para botar a boiada no curral ...
- Essas viagens de hoje, a maioria em corredores, são mais rápidas ou mais lentas que as de antigamente ?
- Hoje a gente faz umas 3 léguas por dia (uns 18 km). Antigamente rendia mais, pois tinha pouco asfalto e a boiada andava mais rápido.
- Tem alguma viagem muito boa que você lembre ?
- Eu fiz uma viagem de Paraúna (GO) até Eldorado, no sul do Mato Grosso do Sul, acho que foi em 1997, que viagem boa ... Foram 85 marchas, tudo muito bom, sem problemas, estrada boiadeira e pouco asfalto. Era uma natureza muito bonita ... Nós fomos por Cassilandia, Inocência, Três Lagoas, Nova Andradina, Naviraí, até chegar em Eldorado (todas em MS). Sempre beirando o rio (rio Paraná, que divide SP de MS).
- E a volta, como é a volta hoje em dia ?
- Todo mundo volta de ônibus. Em geral o fazendeiro deixa os peões em Frutal (MG) ou São José (S.José do Rio Preto, SP) e de lá pega ônibus. Eu venho sempre na boléia do caminhão, com a tropa. Ou até, às vezes, venho de ônibus também. Mas eu tava falando de viagem boa, teve uma viagem muito ruim ... foi de Goiás para Pereira Barreto ... chegando em Jales e Urânia, em São Paulo, tem um entroncamento, onde a estrada boiadeira pula (cruza) o asfalto. Um menino bom, muito bom, premereiro, ele tinha uns 18, 19 anos, montou na mula, ficou pra trás, foi atropelado e morreu ... Olha só o sr., ele nunca tomava banho ... naquele sábado à noite, véspera do dia das mães, resolveu ir tomar banho ... A gente tava num pouso. No dia seguinte bem cedo, domingo do dia das mães, ele escolheu pra montar uma mulinha de nome Fadiga, que tinha ferida no lombo e não era montada há uns 15 dias. Eu lembro até hoje, eu disse pra ele pra ver se a mula ainda estava com o lombo machucado, ele passou a mão em cima, disse pra mim que não, que já tava boa. E arriou a mula, mas ficou pra trás. Eu lembro que a boiada toda já tinha pulado o asfalto, eu já tava lá frente, ele saiu atrasado, correu pra passar pelo asfalto, aí veio uma camionete ... O nome dele era Marlon. Aí veio um peão, me alcançou, disse “olha, teve um atropelamento lá trás”, eu corri e já era tarde.
- Houve algum caso de briga, coisas mais graves ?
- Não, só uma coisinha ou outra. Tem um caso que eu soube, não era minha tropa nem minha comitiva, foi um tiro na espinha que deixou um peão paraplégico ... Era o Itamar, ele bebia muito, parece que ele estava viajando na comitiva do Antonio Mateus, arranjou uma confusão na estrada lá, confusão boba, o cara pega e dá um tiro nele ... deu um tiro e acertou a ...
- A espinha ?
- É, e ficou paraplégico. E ele ta lá em Goiânia ainda, é um cara novo, cara da minha idade ...
- Laudicione, você gosta muito do que faz ?
- Ah, com certeza. Se eu pudesse recomeçar, fazia tudo de novo ...
Laudicione vive em uma casa confortável, perto do centro de Jussara, com d. Teresinha Ribeiro da Rocha, sua segunda esposa. Ele se casou em 1983, em primeiras núpcias, e em 1991, pela segunda vez. Tem um filho com a simpática d. Teresinha, de 15 anos, estudante. Ainda é um ativo comissário de boiadas.
Jussara,GO, outubro de 2007.
Fonte: Foto Memória