Procurei Arcedino Bernardes (Arcedino com “r” mesmo, conforme enfatizou), o Dino Comissário, a partir de uma sugestão de Zé da Neta. Dino tem 87 anos (nasceu em 10/05/1920) e não parece. Quando cheguei em sua casa, D. Maria José, sua esposa, reclamava que ele havia subido no telhado para verificar algumas telhas: e lá estava ele, lépido como um jovem, subindo em telhados ... Dino Comissário tem uma saúde de ferro. Conversamos em sua casa, em um bairro de Goiânia, numa tarde chuvosa e quente de 2ª feira:
- ... nasci em São Sebastião do Paraíso, sul de Minas, em 1920, mas me mudei para Itumbiara (GO) com um ano de idade. Aí, quando eu tinha 8 anos fui morar com o Lalau do Couto, boiadeiro e comissário, pois meu pai tinha morrido. Quando fiz uns 10, 12 anos, comecei a ir na comitiva dele, pra Barretos (SP), trabalhando de copeiro, ajudando o cozinheiro. Na segunda viagem, já fui de ponteiro da boiada ... em 1934, eu fiz uma viagem, tinha 14 anos de idade, de Itumbiara pro Vão dos Angicos e depois pra São Sebastião do Paraíso, em Minas, foi 6 meses de viagem ...
- É muito tempo ! Onde é o Vão dos Angicos ?
- É um lugar no Vão do Paranã, lá no nordeste de Goiás (perto de Cavalcante)... nós levamos 16 dias montados só pra chegar lá.
- Deve dar uns 700 km ou mais ...
- Pois é, chegamos lá, o Lalau comprou 1.400 bois curraleiros (na época, não havia Nelore), aqueles chifrudos, boi de curral mesmo, era uma boiada de 8, 10 anos de idade, de 12 a 14 anos.
- Nossa, isso tudo ?
- Era tudo boi muito erado (com muita idade, muitas eras) mesmo. Ficamos quase um mês lá, comprando e juntando gado. Saímos de Vão dos Angicos, passamos por Pirenópolis, Santa Luzia da Marmelada (Luziânia), Bela Vista, Pouso Alto (Piracanjuba), Morrinhos, Buriti Alegre, Itumbiara, Monte Alegre, já em Minas, Uberabinha (Uberlândia), Araguari, Lagoa dos Esteios, Serra das Sete Voltas, Rio São João, Rio Grande, na ponte Surubim, que liga com São Paulo, fomos pra Santa Rita de Castro, fomos pra Pratapolis e São Sebastião do Paraíso ... entregamos a boiada, foram uns 150 dias viajando com a boiada, fora o mês lá no Vão dos Angicos, levamos 6 meses. Ainda voltamos a cavalo pra Itumbiara ...
- Isso é que é viagem ... Naquela época, década de 30, sem estrada, sem recursos, 6 meses no maior sertão ... boiada curraleira e o sr. ainda menino ...
- Eu viajei de 34 a 41 como capataz, passei a comprar boi. Aprendi a contar gado com o Lalau. Pegava gado no interior de Goiás, até em Rio Bonito (Caiapônia) e levava pra Barretos, em São Paulo.
- Como eram as viagens naqueles tempos ?
- Ah, viagem era só no mato, cerrado, não tinha ponte, cruzava rio a nado, era uma solidão só. Tinha uma coisa boa: toda vez que passava numa fazenda a gente ficava uma semana lá parado, o fazendeiro não deixava a gente seguir viagem, o fazendeiro achava tão bom ... mas hoje é diferente, não quer nem ver a gente.
- Fazendeiro queria conversar, né ?
- É, conversava demais com a gente, era o prazer deles, a gente levava notícias daqui, dali, né ...
- Ainda tinha tropeiro na época que o sr. viajava ?
- Tinha, todo mundo viajava no cargueiro (burro cargueiro), até o dentista tinha um cargueiro, era tudo no burro ... Bom, aí em 42 eu casei e virei comissário.
- E como foi isso ?
- Eu viajava de capataz e aí comecei a viajar pra uma pessoa, o Celso Vieira, que viu meu trabalho. Foi lá em Rio Bonito, eu comecei todo ano a ir lá comprar boiada e levar pra Itumbiara. Lá tinha boi mesmo, prá lá do Rio Bonito, tinha uns Vilela por lá, era muito boi, boiada boa toda vida ... E todo ano eu ia lá pegar boiada prá trazer pra Itumbiara. Aí esse Celso foi uma vez, viu meu trabalho, depois de uns 10 dias trabalhando, juntando gado, era 1.100 bois, ele já ia embora, cedinho, lá na comitiva, me perguntou “você ganha quanto ?”. Eu respondi, uns 300 mil réis por mês, era mil réis, os peões ganhavam 2 mil réis por dia, eram uns 12 peões comigo. E ele falou “pra tomar conta desses mil e tantos bois ? e a responsabilidade toda sua ?”. Nós tinhamos juntado aquele gado brabo, eu tinha prática ... Ai ele falou, eu nunca esqueci disso: “o Dino, você tem muita capacidade, não precisa trabalhar de capataz não. Você precisa comprar uma tropa e trabalhar de comissário”. Lá eu tava com 40 burros. Ai eu falei, comprar com que ? “Quando você chegar lá em Itumbiara, eu vou te vender uma tropa”. Quando ele saiu, mandei um peão levar ele lá em Caiapônia, ele ia pegar um ônibus ou caminhão, não lembro, eu falei com os peões, olha, aqui no mato todo homem é muito bom, ta falando que vai comprar tropa pra mim, chega lá nem me conhece ... Mas quando cheguei em Itumbiara, ele me mandou um bilhete, fui procurar ele, ele me mandou ir em Água Limpa, na fazenda, ir pegar 40 burros, eu fui até lá com meu cunhado. Cheguei na fazenda, o Celso falou “a tropa ta aí, a tropa é pra você”. Eu falei, eu não dou conta de pagar essa tropa, não. Um tropão que precisava de ver ... Não, daqui pra Barretos eu viajo só com 16 burros, não precisa esses 40 não, eu disse. Com 16 burros eu levo 1000 bois pra Barretos. Aí ele mandou eu apartar os 16 burros, eu escolhi os mais ajeitados, tudo brabo, né ? Uma tropa ajeitada. Aí ele me disse, “assina aqui pra mim”, eu olhei, não era letra não, era um bilhete. Aí eu falei, eu não sei se dou conta de pagar, não. Aí ele falou “se não der conta de pagar, você pode sumir com burro e tudo”. Ele falou pra mim desse jeito. Aí eu e o irmão dela e mais dois fomos amansar os burros.
(d.Maria José intervém)
- Você ta me deixando de fora, né ? Foi nós dois. Ele repassava e eu botava freio ...
- A sra. montava também ?!
- Que que é isso ?! Fui criada em burro ... Uma mula saltou comigo na ponte Afonso Pena, a boiada tava todinha dentro da ponte e as tábuas estavam quebradas, um peão gritava “vai cair na água!”, caí nada.
(volta a falar o Dino)
- Aí, com essa tropa amansada, eu peguei uma viagem pra Guaíra, em São Paulo. Eram 800 bois, eu fiz a viagem toda sem pagar pouso, porque era a 1ª viagem como comissário, todo mundo dos pousos me conhecia, sabia que era a primeira viagem como comissário, aí ninguém cobrava ... Fiquei com 20 mil réis, paguei 16 mil pelos 16 burros e fiquei quite com o Celso. Isso foi em um mês. E aí nunca mais parei. Nunca faltou serviço.
- E viajou até quando ?
- A última viagem que fiz foi em 1995, pro Xingu, no Mato Grosso, 1.100 bois, foram 64 marchas. E parei porque não achei mais peão bom ...
- E quando o sr. veio pra Goiânia ?
- Eu mudei em 55, porque Goiânia tinha mais serviço. Trabalhei uns 4 anos só pra um frigorífico, puxava vaca pro frigorífico e depois voltei a viajar prá todo lado. Eu tive, antes de vir pra Goiânia, uma fazenda em Itumbiara, isso foi em 52, eram uns 14 alqueires, muito boa, vendi ...
- E qual foi a melhor viagem que o sr. fez ?
- Ah, eu fiz uma viagem que deu muito trabalho mas foi muito boa, eu saí com 400 vacas, a maioria tava mojando (prenhe), de Novo Brasil (GO). Tinha vaca com bezerrinha nova, eu botei a bezerra na carroça e fomos tocando até Cavalo Queimado (Araguapaz, GO). Lá, peguei mais 700 cabeças e seguimos viagem. E foi nascendo bezerro no caminho, eu tive que arrumar uma carroça prá carregar bezerro. Fomos até Arapoema (atual Tocantins) nessa toada. Foram 3 meses e cinco dias, nasceram 134 bezerros, morreram uns 10 no caminho ... Foi uma viagem diferente, muito boa. Botei o nome de Perereca na 1ª bezerra que nasceu ...
- E a pior ?
- Foi numa que peguei a tropa emprestada, acho que em 80, por aí. Peguei a tropa em Paraúna (GO), e a boiada pra lá de Mara Rosa (também em GO). Era pra ir até Inhumas, perto de Goiânia. Eram 900 bois gordos, dava umas 18 marchas, coisa pequena. Em Pilar de Goiás, perdi 2 bois, caíram num buraco. Não conseguia tirar de jeito nenhum e aí consegui vender um para um açougueiro, o boi tava no buraco, vendi como se tivesse 18 arrobas (1 arroba = 15 quilos). Ele matou lá mesmo. Quando o açougueiro pesou, deu 21 arrobas e 3 quilos ... Era uma boiada enorme. O outro boi eu dei para os garimpeiros ... Aí, numa ponte em Itapaci, a boiada estourou e correu pra cima do peão que ficava na ponte, controlando. Pisoteou o peão, que conseguiu abraçar o pescoço de um boi mas caiu da ponte, junto com vários bois. Morreu esmagado. Cheguei em Carmo do Rio Verde, fui benzer a boiada. Resolvi passar pela cidade no meio da noite, pra boiada não estourar. Quando eu to lá procurando benzedeira, um peão chega pra mim e fala que caíram 2 bois num buraco de fossa, na cidade ... Foi um desespero, um sufoco. Só consegui tirar os bois com ajuda de um monte de gente, foi no braço mesmo e até com a ajuda de um caminhoneiro, com corda. E o sr. sabe que depois que eu arrumei a benzedeira, nunca mais aconteceu nada ? A viagem foi até o fim sem nenhum problema ..
Dino Comissário está casado com D. Maria José Bernardes desde 1942.Ela, além de amansadora de burros, viajava, sempre que podia, na comitiva. Tiveram 4 filhos, todos casados. Eles têm 8 netos e 8 bisnetos. E é com orgulho que falam de todos. Dino é aposentado pela previdência pública, e, além da saúde de ferro, mantém a memória ativa e a alegria de quem cumpriu sua missão.
Goiânia, novembro de 2007.
Fonte: Foto Memória
Tive o imenso prazer de conviver ,alguns anos, com essa pessoa singular, Sr. Dino, que me ensinou muito sobre a vida, sobre respeito, sobre valores, sobre dignidade...
ResponderExcluirUm grande amigo que por algum tempo me ensinou o valor de ter um avô!
Rubens Borges
Rio de Janeiro 2014