Entrevistar Zé da Neta, aliás José Martins de Oliveira, foi quase uma epopéia: muitas idas à Rua 7, no centro de Goiânia, alguns telefonemas para sua casa e muita insistência para quebrar a desconfiança natural desse senhor de 86 anos de idade bem vividos, empertigado, corpo ereto, bem lúcido, com um português falado notável e, caso raro, quase sem regionalismos. Zé da Neta ficou órfão de pai muito novo e sua mãe, viúva jovem, era conhecida como Neta, na pequena Buriti Alegre da década de 30. Cedo Zé resolveu sair de casa por não combinar com o padrasto e cedo enveredou pelo caminho das tropas e boiadas, viajando com um tio chamado Zé Felino. Viajou por 30 anos, até o início da década de 60. De lá para cá, negociou gado, comprou, vendeu. Mas já são mais de 40 anos longe da estrada boiadeira, da comitiva, do fogo no chão, do sono ao relento. E apesar dessa distância no tempo, Zé da Neta não perdeu a paixão pela tropa e pela lida com o gado, paixão que se vê no brilho dos seus olhos quando fala daquela época. Nossa conversa começou informalmente, sentados em cadeiras de uma garagem de aluguel na rua 7, rodeados de outros velhos e novos boiadeiros e fazendeiros, que dali fazem seu ponto de encontro e de negócios:
- ... meu pai morreu novo, com 32 anos, eu ainda era bem novinho, tinha só 1 ano de idade, nasci em maio de 1921 ... ele morreu com maleita (
malária) e eu fiquei com minha mãe e uma irmã. Minha mãe era chamada de Neta lá em Buriti, daí eu ter ficado com o apelido ... mas ela casou de novo, eu não me dava com o padrasto, sabe como são essas coisas, né ? E aí, com 12 anos acho ... acho que em 34, eu peguei viagem com meu tio, o Zé Felino, sujeito bom, comissário experiente. E lá fui eu para São Paulo nessa primeira viagem e fiquei nessa vida de 1934 até 1959, morando em Buriti ... Pois é, eu nasci em Buriti Alegre (
GO) mesmo e meu pai era de Uberlândia e minha mãe de Santa Maria (
ambas em MG) ....
- E as viagens foram até quando ? Quando o sr. virou comissário ?
- Eu vim para Goiânia em 1959, ainda viajei até 1962 ... é, acho que foi 62, daí parei de viajar, comecei comprando e vendendo gado, ganhando comissão, essas coisas. Mas eu virei comissário acho que foi em 1954 ... (
hesita) ... acho que começo dos anos 50, ... foi em 1954, eu comprei minha primeira tropa do Alcides, conhece o Alcides ?
- Conheço, já entrevistei ...
- Pois é, o Alcides me vendeu a primeira tropa. E eu viajava todo o ano, levava de 1.000 a 1.500 bois ...
- Mas 1.500 não é muito mais difícil de tocar na viagem, mais complicado ?
- É, mas nesses casos eu “cortava marcha”, dividia a boiada em duas partes, uma com 800 e a outra com 700, como se fossem duas comitivas ...
- Então tinha muito peão, muito burro e mula ...
- Eram uns 25 burros, muito peão, ia bem, ia bem, não era difícil não. Eu saía de Buriti, pulava (
passava) o rio em Itumbiara (
rio Paranaíba, divisa de GO e MG), na ponte, já tinha a ponte. Mas antes da ponte, desde quando eu comecei a viajar, criança ainda, a gente passava o rio bem acima, no Porto da Mangueira, a nado ... aliás a maior dificuldade que eu achava era passar rio a nado, hoje em dia ninguém tem mais essa coragem não ! Meu tio Zé Felino era homem de coragem, nadava muito bem, a gente atravessava o rio em curva: saía com o gado e a tropa beirando a margem de cá, contra a corrente, e ia indo pro meio do rio ... a correnteza então empurrava a gente, a boiada ia fazendo a curva e já ia a favor da correnteza e aí passava para a outra margem ... aliás, eu lembro de uma coisa, nunca esqueci, fiquei muito impressionado, eu era menino: numa viagem, a gente pousou numa fazenda a umas duas léguas (
12 km) do rio Corumbá, rio rápido e fundo, cheio de pedras ... meu tio Zé Felino acordou a gente cedinho, umas 4 da manhã, para gente ir embora, tinha que atravessar a boiada toda no Corumbá naquele dia, aquela coisa toda, um trabalhão. Tinha um peão chamado Miro, um sujeito bom, muito bom mesmo, que levantou todo animado e disse, veja bem, eu nunca esqueci disso, até hoje lembro como se fosse agora, as exatas palavras dele: “a hora é essa, Zé Felino, uns acaba outros começa” ... E aí lá fomos nós pro rio, para a travessia. Chegamos lá, o Miro era dos mais afoitos, foi tocando o gado dentro d’água e, de repente, uma vaca pegou ele por baixo, ele perdeu o rumo, foi parar no meio da vacada atravessando a nado, ele não conseguia se safar daquilo .. eu lembro dele gritar “me acode, Zé Felino, me acode”, todo aflito, se afogando, não conseguindo sair do bolo das vacas atravessando. Meu tio, que ainda tava do lado de cá na margem, mergulhou no rio, ele gostava muito do Miro, foi até lá mas não deu mais tempo, o Miro se afogou, rodou rio abaixo ... morreu. O sr. sabe que eu viajei com o pai desse aqui, ó (
aponta para Neném Prado, que assiste a conversa), o Zezé Prado ? Zezé não sabia nadar, mas atravessava vários rios montado no lombo do burro e tocava o gado assim, nas travessias, era muito corajoso ...
- Não, não sabia. O Neném até me emprestou uma fotografia do pai dele, o Zezé, justamente dessa época que o sr. fala, década de 30 ... Mas, quando vocês começaram a ir por Itumbiara, passavam por aquela serra, uma serra entre Buriti e Itumbiara, que tem um platô no alto ?
- É, passava, era uma estrada boiadeira que hoje está asfaltada, sobre a Serra do Adauto, é a estrada que passa na chapada no topo da serra.
- Buriti naquele tempo tinha muito movimento, né ?
- Tinha, porque era fronteira, era uma espécie de centro de distribuição de boi. Naquela época Goiás não tinha invernista (
o fazendeiro que engorda gado para o abate). Os boiadeiros vinham para o interior de Goiás, compravam boi magro em Inhumas, Itaberaí, Anicuns, levavam para Buriti Alegre e vendiam para os invernistas de São Paulo. Até o começo dos anos 60 era assim ... depois Goiás começou a ter invernista também e tudo mudou ... Mas Buriti era muito movimentada, tinha de tudo lá, comissário, peão, invernista em viagem, pistoleiro ... Aliás, deixa eu contar uma história de quando eu era menino também, eram três irmãos de uma família de lá, gente boa mas braba: um deles foi morto pela amante, era uma jovem, eles já tinham caso há muito tempo, o moço era casado e um dia essa mulher matou o amante ... o caso deu um alvoroço danado, a moça foi a júri e acabou absolvida. Pois na hora mesmo que ela saiu livre do fórum, foi deitar num banco para descansar, acho que dentro ainda do fórum, um outro irmão chegou e disse “você escapou da justiça mas não escapa de mim”, mais ou menos isso. E passou fogo na moça, matou na hora.
- Foi preso ?
- Nada, era família influente, vingou o irmão ...
- Vamos voltar às viagens ...
- Eu viajei até 54 de peão de boiadeiro quando comprei a tropa do Alcides, eram 16 burros. Fiz a primeira viagem para Mirandópolis, em São Paulo. Ganhei um dinheirinho e, aí, na volta, comecei a comprar mais burros ... e as viagens eram muitas. O sr. sabe que até a década de 80 a comitiva não era na carroça, era burro cargueiro, eu nunca me acostumei com essa tal de carroça na comitiva. Os burros cargueiros eram bons demais, conheciam todos os pontos de pouso, na hora do almoço viravam no trieiro (
trilha que levava a algum lugar, no caso para almoçar) ... sabiam direitinho. E a gente, até os anos 60, na volta das viagens, depois que entregava o gado, vinha era montado ... não tinha estrada de rodagem nem caminhão ...
- Quanto tempo levava na volta, não era a mesma coisa, né ?
- Não, era metade do tempo, mais ou menos. Era um tempo bom, até hoje eu tenho saudade ... mesmo com muitas viagens ruins, e eu lembro de muitas, boi espalhar, boi adoecer, na época não tinha vacina, era um trabalhão danado ... Mas tinha muita coisa boa, eu lembro de uma, era um pouso em Monte Alegre, lá em Minas. O pouso era de um nordestino, que reconhecia minha boiada pelo barulho dos guizos e polacas da tropa, quando a gente tava chegando, “lá vem o Zé da Neta” ... Conhecia de longe. E eu era um comissário muito garboso, muito ajeitado, minha tropa só andava toda arrumada. Esse nordestino tinha a mulher muito bonita, eu chegava lá e ele mandava eu ir conversar com ela, eu achava bom ...
- E dinheiro, dava para viver bem ?
- Eu lembro de ganhar 2 mil e quinhentos réis a marcha, acho que era isso ... também lembro de colocar as notas de 500 réis no bolso, as folhas de couve ... eram umas notas verdes, grandes, pareciam folhas de couve, o povo chamava elas assim. Eu pegava essas notas, enchia os bolsos e saía para comprar gado, naquele tempo não tinha risco, ninguém roubava ... ganhei dinheiro sim.
Naquele tempo Goiás só tinha boi magro, não engordava boi, não tinha frigorífico aqui. Eu vinha de Buriti pegar boiada em Inhumas, Itaberaí. Pegava e tocava para Buriti e daí ia para Barretos, Promissão ... (
SP). Às vezes ia até Caiapônia pegar gado, era um sertão sem fim ...
- (
Neném fala) Caiapônia na época era Rio Bonito ...
- É, lá era muito difícil, havia muita doença ... doença ruim, peão tinha medo de ir até lá, era um sertão ...
- Que tipo de doença ?
- Aquela que cai os dedos ...
- A que chamavam lepra ?
- É, era muito difícil ir até lá. Mas tinha um tipo de viagem (
vira-se para Neném Prado), lá pros lados de Patos de Minas, que tinha uns peões de boiadeiro que viajavam a pé ...
- A pé ?!
- Eles iam na culatra (
Neném confirma) a pé, eram chamados de “pula moita”. Iam tocando o gado na culatra e voltavam a pé, às vezes as viagens duravam 70 dias, eles a pé ... Lá em Patos tinham muitos desses ...
Marquei com Zé da Neta para tirar algumas fotos em sua casa, em um bairro de Goiânia. Lá conheci sua família, segundo ele mesmo, sua razão da vida longa e saudável. E, sentado numa mesa farta, com um delicioso pudim de leite, bolo de queijo, biscoito de queijo e café à vontade, conversei mais um pouco com o Zé e sua simpaticíssima esposa, d. Iolanda. Ela é sua segunda mulher. Zé da Neta enviuvou em 1964 (tinha casado em 1939, com 18 anos de idade) e se casou, em segundas núpcias, com d. Iolanda, segundo ela mesmo, em 65 ou 66. Tem 3 filhos do primeiro casamento e uma do segundo. Tem muitos netos, bisnetos e tataranetos. D. Iolanda, além de excelente cozinheira, tem com certeza, uma imensa participação no olhar de felicidade que Zé da Neta preserva até hoje, do alto de seus 86 anos. Goiânia, agosto/setembro de 2007.
Fonte: Foto Memória