A DISPERSÃO do povoamento do interior do Brasil, desde o início da colonização, e as necessidades do comércio e das comunicações, deram em resultado o uso de transporte em dorso de animal. Tal tipo de transporte não foi de maneira mais decisiva oriundo do afastamento dos centros populosos; determinou-o, antes o tipo de estrada a percorrer. O relevo acidentado do nosso território contribuiu para que os caminhos fossem com freqüência íngremes e tortuosos; as florestas eram também sério obstáculo a vencer e as estradas que as atravessavam eram em geral estreitas, com solo escorregadio e pouco consistente, dada a umidade reinante; a pavimentação, quando havia, era feita de maneira rudimentar com pedras irregulares. Assim, entre o carro de boi e o burro, triunfou o último, por melhor se adaptar a tal estrada. O transporte em lombo de muar é, assim, função da precariedade das vias de comunicação e do acidentado do relevo.
É fácil imaginar-se a importância desse transporte, principalmente quando o Brasil não conhecia a ferrovia nem a estrada de rodagem, Saint–Hilaire, descrevendo o porto de Estrela de 1819, extremo da estrada de Vila Rica, mostra-se impressionado com o movimento intenso emprestado pelas "tropas" que asseguravam a ligação entre o sertão mineiro e o Rio. Igual movimento, não inferior ao de certas estradas européias da época, observava-se em outros portos-entrepostos, com Guaçu e Porto das Caixas.
Na história do transporte no Brasil, ressalta logo, pela sua simplicidade e valor, a besta de carga. Ainda, hoje, onde não se conhece ou não se acomoda o automóvel, é a tração animal ou a carga em lombo de muar o meio mais comum de transporte, apesar mesmo da profunda penetração atual do caminhão-automóvel. Quanto à espécie do animal empregado, varia com os recursos de cada região. Entretanto, o burro é o elemento preferido, por suportar melhor a crueza do caminho e o peso da carga.
A "tropa", ou o burro isolado, constitui no interior do Brasil o tipo genérico da circulação geral, para carga: apresenta grande raio de ação e é o mais encontradiço. É um comboio de muitos animais de carga que, conforme o número, é dividido em dois ou mais lotes conduzidos cada um pelo tocador. O condutor-chefe, o tropeiro, muitas vezes é o proprietário. Este conjunto, que se desloca em passo lento, desperta logo a atenção pela "madrinha" que vai à frente, adornada de fitas e chapadas de metal e fazendo bimbalhar pequenas compainhas ou guizos. O papel da "madrinha" é orientar os outros animais e facilitar a sua reunião após o descanso.
Em certos pontos do país, a "tropa" é empregada nos trabalhos da fazenda. No entanto, a circulação local, de pequeno percurso, é executada,
de preferência pelo carro de boi, ao passo que a "tropa", embora seja um meio mais primitivo, é mais usada para circulaão geral, a grandes distâncias.
Segundo o professor P. Deffontaines, o "tropeiro" foi o traço de união entre o norte e o sul do Brasil, o sul, plano, campestre e criador, forneceu o elemento necessário para penetrar o norte, acidentado e florestal; Sorocaba, situada em posição propícia, era "a cidade-eixo entre o país da árvore e o da erva, e por isso tornou-se o centro das feiras de animais". Os rios, correndo no sul, da periferia para o centro não ofereciam escoadouro prático para os produtos do interior. Coube este papel à besta de carga, à "tropa". O valor considerável do animal como agente transportador pode ser avaliado comparando-se a escassa quilometragem das nossas estradas de ferro e de rodagem.
A primeira concorrência sofrida por êqse sistema de transporte na grande circulação foi, de certo, o caminho de ferro, e mais tarde a rodovia. Mas, quer os trilhos, quer as faixas lisas das rodovias, não extinguiram a "tropa", que continua a exercer função importante na hinterlândia. Modernamente, a "tropa" atua entre as pequenas cidades, vilas e povoados, convergindo para as feiras.
Na época colonial o muar prestou sempre relevantes serviços. Nas audaciosas arremetidas dos bandeirantes pelo sertão, acompanhava-os o cargueiro. Neste serviço o cavalo foi elemento escasso. Até hoje, passados três séculos, o muar continua junto ao homem nas lutas mais árduas, principalmente no Nordeste, onde o jumento resiste à seca e auxilia eficaz e pacientemente o homem.
A estampa não focaliza propriamente uma "tropa" que, conforme foi dito, é constituída de grande número de animais. Representa caboclos que levam para as feiras os produtos de suas roças, devendo trazer depois aquilo de que mais necessitam. Alguns fazem ainda serviços de empreitada e correio, e distinguem-se pela honestidade e zelo.
O equipamento do cargueiro é mais ou menos fixo para todas as regiões em que é encontrado. A base deste equipamento está na cangalha: um colchão de palha trançada formando sistema com um aparelho de madeira, que serve para suportar a carga. Como dispositivos complementares, usam-se a cilha comum, para evitar o deslizamento lateral da cangalha, e o rabicho e o peitoral com a função de impedir o avanço livre da carga para diante ou para trás. Aliás, a segurança do transporte reside numa boa distribuição da carga e conseqüente equilíbrio, no que o caboclo é perito.
Conforme o gênero da carga, varia o tipo do seu acondicionamento para o transporte. Assim, a carga pode ser levada em sacos, fardos, em bruacas ou em caçuás. Geralmente os grãos são levados em sacos com a abertura costurada, deitados ao comprido e cintados por uma corda fina que os prende ao cabeçal da cangalha. O algodão é carregado em fardos deitados, e constitui a carga mais fácil de transportar por ser a mais homogênea. A cana, assim como a lenha, vai reunida em pequenos feixes. O caçuá é usado para as cargas mais variadas: o milho em espiga, porcos, galinhas e, no Nordeste, no tempo das secas e grandes migrações, até crianças. É um enorme cesto ou jacá feito de cipó trançado; alguns são tão compridos que quase tocam o solo, razão por que se empregam também os eqüinos neste gênero de transporte. A bruaca é um saco de couro provido de alças, em que o prolongamento de um dos lados serve de cobertura ou fecho. É largamento usado em Mato Grosso, onde o caçuá é desconhecido.
Quando a jornada a vencer é longa e dura alguns dias, o carregamento é protegido por uma lona impermeabilizada para evitar danos por
chuva. O condutor apresenta-se também pitoresco: descalço ou de alpercatas; chapéu de couro ou palha; camisa e calça freqüentemente remendadas com chitas diversas; na mão, o rêlho de cabo flexível e corda de couro trançado.
É este o tipo de transporte e condutor mais comum no Brasil. As necessidades imediatas e a modéstia do meio determinaram um sistema de -transporte satisfatório — embora rústico — para a pequena economia que êle movimenta.
Autor: Lindalvo Bezerra dos Santos